Carlos Lyra vai além da bossa nova no primeiro álbum
autoral de músicas inéditas em 25 anos*
Em forma aos 85 anos, artista canta tango e até samba de
breque
em disco sofisticado.Foto: Divulgação/Reprodução
É impossível – e até injusto – dissociar Carlos Lyra da
Bossa Nova. Basta dizer que a assinatura deste cantor, compositor e músico
carioca nascido em 11 maio de 1933 – já a pouco mais de um mês de completar 86
anos de vida – figura em nada menos do que três das 12 músicas de Chega de saudade, o histórico
primeiro álbum do criador da bossa, João Gilberto.
Basta dizer também que, quando o LP Chega de saudade foi lançado
em 1959, Lyra apresentou naquele mesmo ano o primeiro álbum, intitulado Bossa Nova, com a obra autoral que
começara a erguer em 1954 com a composição de Quando
chegares.
Ao mesmo tempo em que sedimentou o nome em torno do
movimento que ganhou o mundo, Lyra também foi além da bossa com o dom de
excepcional melodista que impressionava até o soberano Antonio Carlos Jobim
(1927 – 1994). A rigor, Lyra sempre foi muito além do universo musical da Bossa
Nova sem jamais ter se dissociado dela.
É nesse contexto que o magnífico álbum Além da bossa – lançado pelo
artista de forma independente – precisa ser entendido. Trata-se do primeiro
álbum solo autoral de Lyra com músicas inéditas em 25 anos. O último no
gênero, Carioca de algema, saiu no já
longínquo ano de 1994.
Com sonoridade clássica e refinada, Além da bossa é disco fiel ao
estilo
de Lyra. Extrapola a Bossa Nova, mas sem cortar elos com a bossa.
Há músicas realmente inéditas entre as 14 composições
desse álbum viabilizado com a produção executiva de Magda Botafogo e
orquestrado pelo produtor musical Alex Moreira com sofisticados arranjos e
orquestrações de nomes como Marcos Valle, Dori Caymmi, Jaques Morelenbaum,
Antonio Adolfo e o próprio Lyra, entre outros.
Outras músicas já foram gravadas por alguns intérpretes
e/ou parceiros, mas eram inéditas na voz de Lyra. A única composição já
registrada em disco pelo artista é Aonde andou você,
composta em 1956 e apresentada cinco anos depois pelo autor no segundo
álbum, Carlos Lyra (gravado em 1960 e
lançado em 1961).
Há lampejos do majestoso melodista em músicas do porte
de Quando ela fala (Carlos Lyra a
partir de poema de Machado de Assis, 1999), canção inédita em disco arranjada
com o devido lirismo pelo violoncelista Jaques Morelenbaum.
O hábil Morenlenbaum também entendeu o espírito de outra
pérola fina do repertório, a seresteira Pelo bem da vida,
parceria de Lyra com Paulo César Pinheiro composta em 1979 e gravada no ano
seguinte pelos cantores Nelson Gonçalves (1919 – 1998) e Lucinha Araújo.
Com versos do poeta Pinheiro, Lyra compôs vinte anos
depois o Tango suburbano (1999),
alocado ao fim do álbum Além da bossa como
reiteração do título e do conceito desse disco em que o eterno bossa nova dá voz inclusive a
um samba de breque, Achados e perdidos (Samba da
breca), tema de 1973 orquestrado com leveza por Jessé Sadoc,
trompetista também arregimentado para a mesma função no samba Na batucada (2010).
Por mais que expanda o leque rítmico do disco com tango,
bolero e samba de breque, compondo postumamente até com o poeta Castro Alves
(1847 – 1871), autor dos versos de Duas flores (1997),
Carlos Lyra é bossa nova quando arranja, com Marcos Valle, a
música-título Além da bossa –
composta em 2012 com Daltony Nóbrega – e o leve samba Até o fim, parceria de Lyra com
Valle criada em 2006 e lançada no ano seguinte em disco do cantor Emílio
Santiago (1946 – 2013).
A rigor, Além da bossa é
disco que colhe repertório antigo até então preterido por Lyra. Nem por isso
deixa de apresentar pérolas tiradas de baús nem sempre tão antigos.
E era Copacabana –
música feita com Joyce Moreno em 2005, lançada pela parceira em 2006 e ora
reapresentada por Lyra com envolventes cordas orquestradas por Dori Caymmi –
e Belle époque (Carlos Lyra e
Ronaldo Bastos, 2008) são joias de alto quilate.
Gravado por Lyra em 2018 na cidade natal do Rio de
Janeiro (RJ), Além da bossa é
disco em que os arranjos, criados sem invenções de moda, contribuem para
evidenciar o brilho das músicas.
Aos 85 anos de vida e 65 de atividade musical, Carlos
Lyra dribla expectativas e apresenta disco à altura do glorioso passado,
ampliando obra referencial na música brasileira.
*Blog do Mauro Ferreira
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