Negociar não é dobrar-se*
Desde que Jair Bolsonaro enviou ao Congresso Nacional sua
proposta de reforma da previdência, vem crescendo em diversos setores da
política e da sociedade brasileira, mesmo entre aqueles que apoiaram seu nome
nas eleições de outubro, a percepção de que o governo carece de uma estratégia
de coordenação e negociação com o Legislativo. Por outro lado, apoiadores mais
entusiasmados de Bolsonaro e cidadãos descontentes com as práticas escandalosas
de corrupção reveladas nos últimos anos têm insistido na ideia de que qualquer
articulação com o Congresso não se poderia dar senão como negociata de
interesses escusos e antirrepublicanos.
Talvez nem sempre se perceba a relevância da negociação, mas
ela é tão mais valiosa e necessária nas democracias quanto mais desafiador o
tema que está sobre a mesa. É preciso ter clareza: a reforma da previdência,
embora urgente para qualquer conhecedor razoável do tema, é um dos temas mais
complexos no debate público de qualquer democracia e, também, um dos que mais
despertam paixões políticas e contrariam interesses setoriais e corporativos.
Mesmo cidadãos bem informados podem ter dúvidas sinceras – senão sobre a
necessidade geral da reforma, então sobre pontos específicos do projeto. Entre
deputados e senadores, a realidade não é diferente: a sensação no Congresso é
de que nunca houve momento mais propício para se aprovar uma reforma, mas há
dúvidas entre os representantes populares.
Imagine-se o leitor um deputado de boa-fé que tenha dúvidas
sobre a reforma proposta no Benefício de Prestação Continuada (BPC). Será
razoável antecipar o início do pagamento do BPC para os 60 anos de idade – hoje
ele é pago para idosos com mais de 65 anos em situação de extrema pobreza –,
mas diminuir seu valor do atual salário mínimo para os iniciais R$ 400,00, que
aumentariam progressivamente conforme a idade do beneficiado? Se o ponto
referente ao BPC for retirado da reforma, quanto deixará de ser economizado
anualmente? Uma eventual perda nessa economia não poderia ser compensada por
uma reforma mais agressiva em algum outro ponto?
Um parlamentar que tenha essas dúvidas precisa ter,
primeiro, informações claras sobre as consequências de seu voto. Para quem ele
deveria endereçar essas dúvidas? Deveria tentar agendar diretamente com o
ministro da Economia, com alguém da equipe econômica ou procuraria o líder do
governo na Câmara, no Senado ou no Congresso? Nada disso está claro até agora –
nem esses agentes todos, que em diferentes medidas representam o mesmo governo,
estão falando a mesma língua. Se estiverem, fato é que não é essa a percepção
dos parlamentares no dia a dia do Congresso.
Mesmo depois de conseguir as informações, o parlamentar
teria de decidir o que fazer com ela. Imagine que ele esteja convencido sobre a
necessidade de aprovação da proposta atual do governo sobre o BPC, mas sua base
eleitoral não concorde com a mudança. Um parlamentar deve votar de acordo com
sua consciência e o bem comum, mas a sensibilidade aos eleitores é também
inescapável e saudável nas democracias. Em uma situação dessas, o parlamentar
vai procurar os colegas. Seu partido vai fechar questão? E os demais partidos?
Os parlamentares do partido do presidente da República eventualmente comprarão
esse desgaste com as bases eleitorais para apoiar esse ponto da reforma? O
governo estaria disposto a modificar esse ponto se outra questão polêmica da
reforma – digamos a aposentadoria rural – fosse apoiada? Da resposta a todas
essas perguntas dependerá o voto do parlamentar.
Tudo isso é negociação legítima e necessária em uma
democracia, em que os poderes são divididos e, por isso mesmo, devem dialogar e
manter a harmonia entre si. Mas, para que essa negociação possa ser proveitosa,
é preciso coordenação por parte do governo: uma estratégia clara, com líderes
bem definidos e munidos de todas as informações técnicas e conhecimento de
todos os compromissos políticos que o governo estaria disposto a assumir em
prol da aprovação deste ou daquele ponto. Do contrário, parece claro que
qualquer negociação estará fadada ao fracasso: se um deputado recebe uma
sinalização do governo, e outro recebe a sinalização contrária, a informação
perde toda a credibilidade e nenhum dos parlamentares estará seguro para dar
seu voto na proposta do governo.
Por tudo isso, diálogo, negociação e articulação política são
corriqueiros e necessários em uma democracia. Quanto mais complexo e desafiador
um tema, mais se exigirá dos governantes uma capacidade de coordenação
inteligente desse processo, uma liderança inspiradora que não fomente a
discórdia, mas busque terrenos comuns, e uma comunicação arrojada que motive o
alinhamento dos atores políticos na direção das mudanças que se vislumbram como
fundamentais. Se este não for o caminho, todas as sociedades estariam presas a
uma alternativa macabra: ou a total inação, ou a imposição unilateral da
vontade de um grupo.
Quando há, portanto, uma comunicação engajada, transparente
e bem feita, diminui substancialmente a chance de preponderarem os interesses
escusos. Mas suponhamos apenas por um momento, como pensa parte substancial da
população brasileira, que a maioria dos parlamentares atue motivada por
interesses sinistros e inconfessáveis. Nesse caso, a coordenação política
deveria ser eliminada? Muito pelo contrário, porque é na clareza e na
transparência que se permitem identificar as condutas torpes. Na balbúrdia da
falta de transparência e de coordenação é que se torna mais difícil e custoso
distinguir as condutas republicanas daquelas indecorosas, imorais e mesmo
ilegais. Isso é algo que toda a sociedade precisa reconhecer e que melhorará
consideravelmente o processo político brasileiro.
Ainda que nem todas as partes tenham essa clareza, o fato é
que há um novo Congresso eleito, e com uma boa taxa de renovação, e um novo
Executivo. Há espaço para um aprendizado paulatino na interação entre os
agentes políticos e para que a sociedade aprenda também e se engaje de forma mais
madura nesse processo. Aprender a negociar não é dobrar-se, mas sim crescer na
virtude democrática. Mesmo que seja um aprendizado lento, com tropeços e
ruídos, é preciso que os passos sejam dados na direção certa: a do diálogo.
Essa é uma caminhada que, no fundo, todos os atores políticos, incluindo os
cidadãos, devem fazer juntos.
*Editorial da Gazeta do Povo