Deboche no Supremo
Chega a ser tedioso ter de
reafirmar o óbvio, mas não há democracia sem segurança jurídica. Um dos pilares
dessa segurança é a jurisprudência assentada pelos tribunais superiores, que
serve de referência para a interpretação das leis. Por esse motivo, a
jurisprudência não pode ser questionada a todo instante, muito menos atropelada
pela vontade individual de algum magistrado, sob pena de transformar o sistema
judiciário do País numa loteria. No limite, quando esse sistema envereda pelo
caminho da imprevisibilidade, falha em sua tarefa de alcançar a pacificação
social e ameaça até mesmo a manutenção do Estado Democrático de Direito.
Assim, a vergonhosa
aventura protagonizada na quarta-feira passada pelo ministro Marco Aurélio
Mello no Supremo Tribunal Federal, ao conceder intempestiva liminar para
suspender a possibilidade do início da execução penal após condenação em
segunda instância, constituiu gravíssimo atentado ao princípio da segurança
jurídica. De quebra, deixou o País intranquilo diante da perspectiva de que, a
partir da canetada de um ministro do Supremo, o ex-presidente Lula da Silva
pudesse ser libertado, situação que certamente causaria tumulto e confusão, ainda
mais às vésperas da posse do presidente Jair Bolsonaro.
Como se sabe, existe
jurisprudência firmada desde 2016, quando o plenário do Supremo decidiu, a
partir do julgamento de um habeas corpus, que um réu condenado por órgão
colegiado em segunda instância poderia começar a cumprir imediatamente a pena.
Considerou-se que, nessa situação, não há mais por que se falar em presunção de
inocência, pois a culpabilidade do réu já está devidamente assentada. É o que
acontece na maioria dos países civilizados.
No entanto, desde a prisão
do sr. Lula da Silva, em abril, o Supremo passou a ser pressionado a recuar.
Ora, é evidente que a prisão do sr. Lula da Silva, malgrado seu evidente
impacto político, não constituiu, do ponto de vista jurídico, um fato novo que
justificasse uma eventual mudança de jurisprudência. Por essa razão, quando
julgou pedido de habeas corpus em favor de Lula logo após a prisão, o Supremo
manteve o entendimento em vigor desde 2016.
Naquela ocasião, contudo,
os ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que foram votos vencidos,
manobraram para tentar forçar o Supremo a pautar uma revisão da jurisprudência.
Como a então presidente do Supremo, Cármen Lúcia, negou-se a corroborar a
tramoia, passou a ser alvo de grosserias do ministro Marco Aurélio. O mesmo
aconteceu com a ministra Rosa Weber, que igualmente rejeitou a tese que
favoreceria Lula. “Compreendido o tribunal como instituição, a simples mudança
de composição não constitui fator suficiente para mudar jurisprudência”,
explicou a ministra Rosa Weber para seus furibundos colegas.
Aparentemente inconformado
com a derrota, o ministro Marco Aurélio apelou então para a decisão monocrática
– que, se levada a efeito, libertaria dezenas de milhares de presos, entre eles
o sr. Lula da Silva. O ministro esperou até a véspera do recesso do Judiciário
para se manifestar, tentando evitar assim que o colegiado se reunisse para
julgar o mérito de sua liminar ainda neste ano. Alegou que o fazia porque
precisava reagir à “manipulação da pauta” do Supremo, uma vez que o atual
presidente, Dias Toffoli, havia marcado uma nova análise desse tema somente
para abril do ano que vem. O próprio Toffoli, como esperado, cassou a liminar
de Marco Aurélio.
Em seu despacho, o
ministro Marco Aurélio escreveu que a segurança jurídica “pressupõe a
supremacia não de maioria eventual (...), mas da Constituição”. Depreende-se
então que, para esse magistrado, a jurisprudência formada por decisão colegiada
da qual ele discorda simplesmente não vale. E o ministro Marco Aurélio
aproveitou para destratar seus colegas de Supremo, acusando-os de desrespeitar
a ordem jurídico-constitucional: “Que cada qual faça a sua parte, com
desassombro, com pureza d’alma, segundo ciência e consciência possuídas”,
escreveu o ministro. E acrescentou, quase como um deboche: “Tempos estranhos os
vivenciados nesta sofrida República!”. De fato: tempos estranhos.
Portal Estadão