Fake ONU
Carlos Alberto Sardenberg
Fake News não são apenas
mentiras deslavadas. Quer dizer, muitas são, mas facilmente desmentidas. As que
produzem efeitos fortes são as fake mais elaboradas, com base em algumas
verdades e muitas distorções.
Há um jeito simples de
entendê-las: buscar a história em sua fonte original, ali de onde partiu a
informação posteriormente manipulada.
O caso de hoje, claro, é o
comunicado do Comitê de Direitos Humanos da ONU, pedindo que o Brasil tome as
medidas necessárias para garantir que Lula, mesmo preso, participe das eleições
presidenciais com todos os direitos de candidato.
Aqui já temos um ponto: o
primeiro comunicado é do Comitê de Direitos Humanos, um órgão formado por 18
“especialistas” independentes – acadêmicos em geral – e que não tem nenhum
poder decisório ou mandatório. Está lá no site da ONU: a função do Comitê é
“supervisionar e monitorar” o cumprimento dos acordos internacionais de defesa
dos direitos humanos. E fazer recomendações, sempre em entendimento e consultas
com os países envolvidos.
Esse comunicado não foi
divulgado oficialmente, mas saiu em matéria da BBC, na última sexta-feira. Um
vazamento.
Depois, saiu uma nota do
Escritório de Direitos Humanos, no site oficial da ONU, com o título
“Information note” sobre o Comitê de Direitos Humanos. Ali se explica que não
se deve confundir o Comitê com o Conselho de Direitos Humanos – este um órgão
de alto nível, formado por representantes (diplomatas) de 47 países e que se
reporta à Assembleia Geral da Nações Unidas, o órgão máximo da entidade. E este
Conselho não decidiu absolutamente nada sobre esse caso.
Vai daí que são fake todas
as notícias do tipo: ONU manda, determina, exige que Lula participe da eleição;
Conselho da ONU decide a favor de Lula, (forçando uma confusão do Comitê com o
Conselho, por ignorância ou má fé); decisão do Comitê é obrigatória.
Tem mais. O próprio texto
oficial da ONU faz as ressalvas que denunciam indiretamente aquelas fake news.
Diz: “é importante notar que esta informação, embora seja emitida pelo
Escritório das Nações Unidas para Direitos Humanos, é uma decisão do Comitê de
Direitos Humanos, formado por especialistas independentes. (Logo) esta
informação deve ser atribuída ao Comitê de Direitos Humanos”.
Por que a ressalva? Óbvio,
para deixar claro que não se trata de decisão da ONU, nem do Conselho de
Direitos Humanos, nem do Alto Comissariado, muito menos da Assembleia Geral.
E isso, claro, faz
diferença. Pode-se dizer que o comunicado do Comitê é um primeiro passo para um
longo procedimento, inclusive de consultas, antes de qualquer decisão
conclusiva.
Também é preciso ressaltar
que a segunda nota, a oficial, é uma resposta à repercussão da primeira.
E, de novo, é um órgão
superior descompromissando a ONU da decisão do Comitê.
Além do mais, a própria
nota do Comitê tem um jeitão de fake news. Por exemplo: pede que o “Brasil” ou
o “Estado brasileiro” garanta os direitos eleitorais de Lula. De que se trata?
Do executivo? Do Legislativo? Do Judiciário? Todo mundo sabe, ou deveria saber,
que o caso está no Judiciário, que é independente, e que os demais poderes não
podem fazer nada.
Logo, o Comitê deveria ter
se dirigido ao Judiciário. Mas como não pode fazer isso formalmente, sai com
esse vago “o Brasil” ou o “Estado”. Mostra que busca repercussão política e não
efeitos práticos.
Além disso, o Comitê
endossa totalmente a tese da defesa de Lula. Diz que o ex-presidente deve ser
candidato com plenos direitos, como uma medida liminar, uma cautela - “até que
todos os recursos pendentes de revisão contra sua condenação sejam completados
em um procedimento justo e que a condenação seja final”.
Ora, todo mundo sabe que,
pela decisão vigente do STF brasileiro, o condenado em segunda instância vai
para a cadeia cumprir pena, mesmo que ainda possa recorrer ao STJ e STF.
E, atenção: a função do
Comitê é supervisionar o cumprimento dos direitos humanos previstos nos
diversos tratados patrocinados pela ONU.
E em nenhum desses
tratados está escrito que cumprir pena depois da segunda instância é uma
violação de direitos humanos. Reparem: nenhum tratado internacional condena a
execução da pena em segunda instância. Nem em primeira instância – como ocorre
em grande parte dos países, assunto que nunca mereceu a atenção do Comitê de
Direitos Humanos da ONU.
Resumindo: a nota do
Comitê é uma fake news, que originou outras fake news.
Portal G1