Marco Aurélio mudou-se
para o País do Faz de Conta
Augusto Nunes
O ministro hoje luta para
livrar da cadeia
a bandidagem que denunciou em maio de 2006
Em maio de 2006, ao
assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio Mello
transformou o discurso de posse numa alentadora mensagem ao Brasil que presta.
Perplexo com a roubalheira do Mensalão, indignado com a desfaçatez dos
envolvidos no escândalo, o ministro do Supremo Tribunal Federal fez uma
corajosa declaração de guerra ao que qualificou de “país do faz de conta”.
Confira alguns trechos do
pronunciamento:
Infelizmente, vivenciamos
tempos muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que,
envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira ─ composta, na
maior parte, de gente ordeira e honesta ─ um misto de revolta, desprezo e até
mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas as mentiras, tão grosseiras as
justificativas, tão grande a falta de escrúpulos que já não se pode cogitar
somente de uma crise de valores, senão de um fosso moral e ético que parece
dividir o País em dois segmentos estanques ─ o da corrupção, seduzido pelo
projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande
massa comandada que, apesar do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e
progredir.
Não passa dia sem
depararmos com manchete de escândalos. Tornou-se quase banal a notícia de
indiciamento de autoridades dos diversos escalões não só por um crime, mas por
vários, incluindo o de formação de quadrilha. A rotina de desfaçatez e
indignidade parece não ter limites, levando os já conformados cidadãos
brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente, como se tudo fosse muito
natural e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos, nas mais
diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura indistinta
de escárnio e afronta, e o erro passado justificasse os erros presentes.
Perplexos, percebemos, na
simples comparação entre o discurso oficial e as notícias jornalísticas, que o
Brasil se tornou um país do faz-de-conta. Faz de conta que não se produziu o
maior dos escândalos nacionais, que os culpados nada sabiam ─ o que lhes daria
uma carta de alforria prévia para continuar agindo como se nada de mal
houvessem feito. Faz de conta que não foram usadas as mais descaradas
falcatruas para desviar milhões de reais, num prejuízo irreversível em país de
tantos miseráveis. Faz de conta que tais tipos de abusos não continuam se
reproduzindo à plena luz, num desafio cínico à supremacia da lei, cuja
observação é tão necessária em momentos conturbados.
Em Medicina, “crise”
traduz o momento que define a evolução da doença para a cura ou para a morte.
Que saiamos dessa com invencíveis anticorpos contra a corrupção, principalmente
a dos valores morais, sem a qual nenhuma outra subsiste. Nesse processo de
convalescença e cicatrização, é inescusável apontar o papel do Judiciário, que
não pode se furtar de assumir a parcela de responsabilidade nessa avalancha de
delitos que sacode o País.
Quem ousará discordar que
a crença na impunidade é que fermenta o ímpeto transgressor, a ostensiva
arrogância na hora de burlar todos os ordenamentos, inclusive os legais? Quem
negará que a já lendária morosidade processual acentua a ganância daqueles que
consideram não ter a lei braços para alcançar os autoproclamados donos do poder?
Quem sobriamente apostará na punição exemplar dos responsáveis pela sordidez
que enlameou gabinetes privados e administrativos, transformando-os em balcões
de tenebrosas negociações?
Se aqueles que deveriam
buscar o aperfeiçoamento dos mecanismos preferem ocultar-se por trás de
negociatas, que o façam sem a falsa proteção do mandato. A República não
suporta mais tanto desvio de conduta. Ao reverso do abatimento e da inércia, é
hora de conclamar o povo, principalmente os mais jovens, a se manifestar pela cura,
não pela doença, não pela podridão do vale-tudo, que corrói, com a acidez do
cinismo, a perspectiva de um futuro embasado em valores como retidão,
dignidade, grandeza de caráter, amor à causa pública, firmeza de propósitos no
empenho incondicional ao progresso efetivo, e não meramente marqueteiro, do
País.
Àqueles que continuam
zombando diante de tão simples obviedades, é bom lembrar que não são poucos os
homens públicos brasileiros sérios, cuja honra não se afasta com o tilintar de
moedas, com promessas de poder ou mesmo com retaliações, e que a imensa maioria
dos servidores públicos abomina a falta de princípios dos inescrupulosos que
pretendem vergar o Estado ao peso de ideologias espúrias, de mirabolantes
projetos de poder.
Nunca é demais frisar que,
se a ordem jurídica não aceita o desconhecimento da lei como escusa até do mais
humilde dos cidadãos, muito menos há de admitir a desinformação dos fatos pelos
agentes públicos, a brandirem a ignorância dos acontecimentos como tábua de
salvação.
O Judiciário compromete-se
com redobrado desvelo na aplicação da lei. Não haverá contemporizações a
pretexto de eventuais lacunas da lei, até porque, se omissa a legislação,
cumpre ao magistrado interpretá-la à luz dos princípios do Direito, dos
institutos de hermenêutica, atendendo aos anseios dos cidadãos, aos anseios da
coletividade.
Daquele maio para cá, como
vem demonstrando a Lava Jato e outras operações anticorrupção, o colossal
viveiro de meliantes não parou de crescer. O ministro continua recitando que
“vive tempos estranhos” (ou “muito estranhos”). Mas o Marco Aurélio modelo 2006
não existe mais. Saiu de circulação há muito tempo — e foi substituído por
versões cada vez mais lastimáveis.
Todas atropelam com
ferocidade os parágrafos acima reproduzidos. Nenhuma tem qualquer semelhança
com o autor do histórico discurso de 2006. O Marco Aurélio-2012, por exemplo,
fez o possível para evitar que os quadrilheiros do Mensalão fossem punidos pelo
Supremo. No momento, o Marco Aurélio-2018 anda berrando que a prisão de Lula é
“ilegal” e “inconstitucional”.
O ministro mudou de ideia,
mudou de turma, mudou de lado. E mudou-se de vez para o País do Faz de Conta.
Pelo sorriso, parece achar que fez um bom negócio.
Justiça, desde que nos
favoreça!
Ricardo Noblat
O que é certo e o que não
é
Para o PT, soltar o
ex-ministro José Dirceu, como fez ontem a trinca de ministros Gilmar Mendes,
Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, não é fazer política, é fazer justiça.
Fazer política para o PT
quem fez foi o ministro Edson Fachin ao remeter a exame do plenário de 11
ministros do Supremo Tribunal Federal o pedido de libertação do ex-presidente
Lula.
Mesmo sob o comando direto
do ministro Lewandowski, na época presidente do Supremo, o processo de
impeachment de Dilma não passou de um golpe parlamentar-judicial-mediático,
segundo o PT.
Mas manter os direitos
políticos de Dilma, que agora poderá ser candidata às eleições de outubro, não
foi golpe – embora a Constituição diga que presidente deposto perde os direitos
políticos.
Eleição sem Lula é fraude
– ficou rouco de tanto repetir o PT antes e logo depois de Lula ter sido preso.
Deixou de ser nos últimos meses na medida em que o PT se prepara para ter
candidato a presidente.
Condenar Gleisi Hoffmann
por corrupção seria mais um atentado ao Estado de Direito, pregou o PT até a
semana passada. Como ela acabou absolvida, o PT passou a elogiar a Justiça.
O certo é tudo aquilo que
nos beneficia. O errado, o que nos prejudica. Entendimento velhaco, esse.
Publicados no portal da
Revista VEJA em 28/06/2018