O poder e o despudor
A regra do jogo - Os presidentes tinham estilos
diferentes, mas, diz a JBS, todos sabiam e se locupletavam das
propinas (Gabriela Biló/Estadão Conteúdo - Líbia Florentino/Folhapress -
Cristiano Mariz/VEJA)
Há um ano, a JBS, a maior processadora de carne do mundo,
tornou-se também uma referência entre os campeões nacionais da propina. Em 11
de maio de 2017, a homologação do acordo de delação dos irmãos Joesley e Wesley
Batista, donos da empresa, e de cinco de seus subordinados, revelou ao país o
repasse de 1 bilhão de reais a políticos e servidores públicos. Desde então, a
pessoa jurídica, JBS, e as pessoas físicas, Joesley e Wesley, percorrem
trajetórias distintas. A companhia, depois do sufoco, anunciou na semana
passada aumento do lucro líquido, redução do endividamento e um novo acordo de
renegociação com os bancos. Já os irmãos Batista perderam a imunidade criminal,
permaneceram seis meses na cadeia e já figuram como réus. O caso de
Joesley é ainda mais espinhoso. O Ministério Público denunciou-o por crimes
como corrupção e lavagem de dinheiro.
Com medo de ser
hostilizado ou agredido nas ruas, Joesley vive recluso em sua mansão, em São
Paulo, e nem aparelho celular tem mais. Quando selou sua delação, o empresário
estava certo de que asseguraria pelo menos a liberdade ao passar sua vida a
limpo, o que significou revelar a simbiose entre uma empresa sem limites para
comprar favores, partidos venais e governantes sem limites para se vender.
A primeira parte da delação contou com 42 anexos. Agora, na tentativa de
recuperar os benefícios que perdeu no acordo, Joesley está detalhando uma
segunda leva de revelações, que foi apresentada em agosto passado e contém 76
anexos. VEJA teve acesso à íntegra de todos esses textos. No conjunto, a
leitura dos anexos, somada aos depoimentos complementares que Joesley vem
prestando, revela o envolvimento explícito de três presidentes da República nos
achaques de propinas.
Já se sabia que a JBS contou ter depositado 150 milhões
de dólares no exterior para Lula e Dilma Rousseff, e que os valores,
administrados pelo ex-ministro Guido Mantega, seriam comissões por aportes do
BNDES e de fundos de pensão na companhia. Sabia-se, também, que a JBS disse que
Temer recebeu quantias diversas, como uma bolada de 15 milhões de reais em
2014, da qual saiu o montante de 1 milhão de reais entregue em dinheiro
vivo ao coronel João Baptista Lima, suspeito de ser laranja do presidente.
Joesley agora se dedica a narrar as negociações por trás de cada transação.
O empresário revela que a corrupção atingiu níveis tão rocambolescos nos
últimos quinze anos que Dilma e Temer chegaram a tratar de propina pessoalmente
com ele, dispensando os intermediários de praxe. Algo que nem Lula, preso por
corrupção, fez. Ele nunca falava do assunto abertamente e sempre o delegava a
subordinados. Era seu disfarce.
Na quarta-feira 16, Joesley prestou depoimento sobre uma
mesada paga pela JBS a Fernando Pimentel quando este ocupava o cargo de
ministro do Desenvolvimento. Pimentel aparece em outro enredo que Joesley
pretende revisitar. A história é a seguinte: segundo o empresário, Dilma lhe
pediu, dentro do Palácio do Planalto, que fizesse uma doação, em 2014, a
Pimentel. Até então, os dois nunca tinham tratado de dinheiro. Como a
iniciativa partiu da presidente sem nenhum rodeio, Joesley disse que a ajuda
solicitada sairia da conta de propina administrada por Mantega no exterior — e
que, com a doação a Pimentel, o saldo da conta secreta ficaria zerado. Dilma
deu o o.k. A JBS liberou 30 milhões de reais.
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O negociador – O ex-diretor do grupo JBS Ricardo Saud e os anexos: ele era o encarregado de combinar com os políticos o valor e o local de entrega da propina e acompanhar os interesses da empresa no governo (Marcelo Camargo/Agência Brasil) |
Em seus depoimentos, Joesley apresenta contextos
parecidos no caso de Michel Temer, que, segundo o empresário, nunca teve pudor
de falar de dinheiro irregular. Aos investigadores, Joesley fez questão de informar
que a JBS recorreu a dois aliados do presidente numa tentativa de destravar um
projeto de interesse da empresa no Porto de Santos. São eles: Wagner Rossi e
Milton Ortolan, que recebiam mesadas da JBS e foram presos na Operação Skala,
da Polícia Federal. Joesley costuma contar um caso para ilustrar como Temer e a
turma do MDB são agressivos quando o assunto é grana. Ele diz que a dez dias da
votação do impeachment de Dilma — a dez dias de virar presidente, costuma
ressaltar, com ar de espanto — Temer lhe pediu pessoalmente 300 000 reais.
Todos esses enredos já são de conhecimento da polícia. “A gente diz que o
Joesley virou funcionário da PF. A cada depoimento, ele brinca que pedirá
estabilidade”, diz um de seus interlocutores.
Os depoimentos recorrentes do empresário são uma aposta
para manter sua delação de pé. Em 2017, Rodrigo Janot, então no comando da
Procuradoria-Geral da República (PGR), pediu a rescisão do acordo por entender
que Joesley omitira informações às autoridades. O pedido ainda depende de
homologação do ministro Fachin. Em vez de liberdade, Joesley vislumbra o risco
de uma nova temporada atrás das grades. Em setembro do ano passado, chegou a
ser preso em razão das tais omissões. Dias depois, foi a vez de Wesley, acusado
de usar informações privilegiadas na compra e venda de ações da JBS. Os irmãos
Batista ficaram numa ala da carceragem da Polícia Federal em São Paulo em que
tinham a companhia de servidores encrencados com a Justiça. A cela de um era ao
lado da cela do outro. Ambos tinham direito a duas horas de banho de sol por
dia e podiam deixar a tranca para conversar com os advogados. Joesley, então,
pediu a um de seus defensores que o visitasse, diariamente, de manhã e à tarde.
Na temporada no cárcere, os irmãos Batista tiveram bom
comportamento. Cortaram o cabelo um do outro e até deram banho no deputado
Paulo Maluf, quando este, adoentado, passou rapidamente pela carceragem da PF
em São Paulo. Num fim de semana, conseguiram autorização para limpar a ala
feminina. Wesley acabou solto em fevereiro passado. Joesley, no mês seguinte.
Hoje, os dois, criminosos confessos, sentem-se injustiçados. Wesley insiste na
tese de que não é correto que os delatores sejam presos enquanto os delatados
continuam nos cargos mais poderosos da República. Joesley afirma ter sido
constrangido a corromper, já que sua empresa estaria subordinada às regras do
Estado e era chamada frequentemente pelos representantes do governo para tratar
de propinas e dólares no exterior.
Os irmãos Batista decidiram fazer um acordo de delação
premiada em fevereiro de 2017, depois que operações de combate à corrupção e
delatores se aproximaram da JBS. Era questão de tempo a empresa cair na rede
dos investigadores. Naquele mês, o então diretor jurídico da companhia,
Francisco de Assis e Silva, que também se tornou delator e coordenou pelo lado
da empresa a operação controlada que mergulhou o governo Temer numa crise que
não terminou até hoje, entrou em contato com o Ministério Público e prometeu
uma colaboração ampla, geral e irrestrita: “Vamos fazer uma delação sobre os
donos do poder”.
São sete os delatores da JBS. No varejo, eles detalharam
pagamentos em espécie, depósitos no exterior e doações eleitorais, por dentro e
por fora. No atacado, jogaram luz sobre grandes esquemas de corrupção
protagonizados pelas maiores legendas do país. “Não tem o ‘Escola sem Partido’?
A nossa foi a delação sem partido”, diz-se na empresa. De 1 bilhão de
reais repassados pela JBS à classe política, 600 milhões de reais foram doações
eleitorais, por dentro e por fora, 200 milhões de reais, destinados em espécie
ao grupo do ex-deputado Eduardo Cunha, hoje preso, e 200 milhões de reais,
gastos com funcionários da Receita Federal e despesas nos estados.
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O homem da mala – Florisvaldo de Oliveira (à dir.), ao lado do então ministro da Agricultura, Neri Geller, e seus anexos: entrega de 250 000 reais e uma foto de recordação enviada pela assessoria ao seu e-mail (./.) |
Parece uma contabilidade detalhada e organizada, mas não
é. Ali, o mundo da propina funciona como numa operação mambembe, com pouco
controle e muito amadorismo. Dos 400 milhões em doações registradas, a JBS não
soube informar quanto foi dado em troca de vantagens indevidas. No caso da
Odebrecht, a operação para pagamento de propina era descentralizada. Por isso,
foram 77 os delatores da empreiteira. Na JBS, Joesley era o chefe e abria o
crédito pedido pelos políticos. Demilton Antônio de Castro, “o planilheiro”,
registrava o valor a ser pago. Ricardo Saud, o negociador, combinava com os
políticos quanto e como cada um deles receberia — em espécie, doação eleitoral
ou no exterior. A Florisvaldo de Oliveira, “o homem da mala”, cabia distribuir
a grana. Era tudo tratado de maneira tão simples que, numa de suas incursões,
Oliveira entregou 250 000 reais ao então ministro da Agricultura, Neri
Geller, dentro do ministério. Depois, posou ao lado de Geller para uma foto,
despachada para o seu e-mail pela própria assessoria da pasta. Wesley Batista e
Valdir Boni, diretor de tributos, desempenhavam papéis secundários,
dedicando-se às negociações nos estados.
Eram tantos e tão recorrentes os repasses de recursos que
a JBS até dividiu os três maiores partidos do país em perfis. O MDB era
apelidado de “partido conta-corrente” — descobria uma demanda da empresa, batia
à porta da JBS e dizia que ela só seria aprovada mediante propina. O PT acolhia
todas as demandas da JBS de pronto — e só mais à frente, sobretudo em épocas de
eleição, cobrava a conta. O PSDB pedia sem parar e não se comprometia com nada.
Queria a grana pelo simples fato de estar bem posicionado no tabuleiro. “O
Joesley não procurou ninguém. Ele não procurou Geddel Vieira Lima para dizer
que tinha um pedido de empréstimo na Caixa. As operações da JBS no BNDES também
eram redondas”, diz um de seus interlocutores. Não é bem assim. O próprio
Joesley, ao complementar sua delação, listou políticos que receberam doações
sem que houvesse contrapartida, numa espécie de investimento futuro. “O que se
queria com esses pagamentos era que os beneficiários se tornassem ou
continuassem benevolentes com a empresa”, disse.
Já as operações do BNDES só têm de redondos os muitos
zeros das cifras envolvidas. A área técnica do Tribunal de Contas da União
(TCU) calculou em mais de 700 milhões de reais o prejuízo do banco só com a
compra de ações e títulos da dívida da JBS. A empresa rechaça as conclusões do
TCU. Um representante do grupo explica que a companhia não precisava de verba
pública para crescer, que podia captar dinheiro no mercado e que, por isso, o
repasse de propina não visava à compra de facilidades. Era só uma forma de
evitar chateação com agentes públicos. Ele acrescenta ainda que a JBS, ao
contrário da Odebrecht, a campeã em pagamento de propina, não distribuía
dinheiro sujo obtido com contratos superfaturados, mas subtraído das próprias
margens de lucro. Era quase uma ação de caridade.
Publicado no Portal da Revista VEJA – Edição 2583 – 23/05/2018