Eliane Cantanhêde
Ao restringir o foro privilegiado para senadores e
deputados federais apenas por crimes cometidos
durante o mandato e relativos a ele, o Supremo quebrou um
paradigma, abriu uma ampla avenida para derrubar o foro de demais autoridades e
lavou a alma da opinião pública. Mas isso é só o começo.
Depois da sessão, perguntei à presidente Carmen Lúcia
quando a mudança vai começar na prática: “Imediatamente”, ela respondeu, sem
titubear. E pode ser hoje. As dúvidas, porém, são muitas:
1) O próprio STF terá de avaliar, caso a caso, o que é e
o que não é crime relativo ao mandato. Receber propina para votar um projeto,
evidentemente, é. O marido bater na mulher, ao contrário, não tem nenhuma
relação com a função. E quando o deputado dá um tapa na cara de alguém num
evento político, como aconteceu no Pará?
2) Após a decisão do STF, os advogados vão avaliar se é
melhor para o réu ficar no STF ou ir para a primeira instância. E vem a
maratona de recursos, numa direção ou outra. Quanto tempo isso dará ao réu e
quanta energia tomará do ministro e de uma turma do STF?
3) Não haverá mudança de instância após a instrução do
processo – quando o ministro dá prazo às partes para alegações finais –, pelo
princípio da “prorrogação de competência”. Afinal, o juiz que acompanha um
caso, ouve acusação e defesa e conhece as provas é o mais apto para proferir a
sentença. Então, dois casos semelhantes poderão ter destinos diferentes por
questão de timing. Um ficará no STF, outro irá para a primeira instância. Uma
confusão.
4) Todos os processos referentes à Lava Jato irão
automaticamente para o juiz Sérgio Moro, ou uns vão para o Rio, outros para
Brasília, outros ainda para a Bahia e assim por diante? Com 18 mil juízes no
País, há ou não o risco de olhares, interpretações e sentenças muito díspares?
Para uns réus, a ida para a primeira instância será o inferno e, para outros, o
paraíso?
5) Mais: Moro está numa Vara especializada nos crimes da
Lava Jato, mas em Belo Horizonte, por exemplo, há dezenas de juízes com
milhares de processos referentes a tráfico, estelionato, assassinato etc. Quando
um juiz receber um caso do Supremo, por sorteio, vai se deparar com um processo
complexo, cheio de minúcias e de excelentes advogados pagos a peso de ouro.
Isso vai ou não parar tudo até ele tomar pé da situação?
6) Renan Calheiros, Romero Jucá e Aécio Neves, campeões
de inquéritos entre os que têm foro no STF, enfrentam processos por variados
motivos. Cada processo vai para um Estado, uma Vara, um juiz? Vão ter advogados
em Curitiba, Brasília, São Paulo, Minas, Alagoas, Roraima? Vão virar muitos
Renans, Jucás e Aécios?
7) Como indagou o ministro Gilmar Mendes, o que acontece
com os processos de parlamentares que trocam de cargo? Detalhando: como
deputado, o sujeito era julgado no STF, agora cai na primeira instância, aí
vira ministro e volta para o STF? E, se é demitido, volta de novo para o juiz
de primeira instância?
8) Aliás, quando virá a “isonomia” cobrada por Dias
Toffoli? Ou seja, e a restrição de foro também para ministros, governadores,
membros do próprio Supremo...? Nesse caso, um dos 18 mil juízes poderá pedir
busca e apreensão no Planalto e no STF?
9) E a principal dúvida é se, e quando, vier o fim da
prisão em segunda instância. O sujeito será julgado antes na primeira e depois
na segunda instância, mas, condenado, o que acontecerá? Nada. Ele fará um ar
indignado, posará de injustiçado, culpará os inimigos e a mídia e irá para casa
curtir mil e um recursos durante 20 anos. Até seu caso voltar à origem: o
próprio Supremo.
O Brasil precisa mesmo rever o foro, mas não achem que
será rápido, fácil, muito menos uma festa.
Publicado no portal do jornal Estado de São Paulo em
04/05/2018