Limites ao Poder Judiciário*
A Constituição atribui ao Congresso a prerrogativa de
sustar os atos normativos do presidente da República “que exorbitem do poder
regulamentar ou dos limites de delegação legislativa”, conforme o artigo 49,
inciso V. Essa prerrogativa visa a impedir que o chefe do Executivo invada
competência exclusiva do Legislativo. Contudo, a Constituição não dá poderes ao
Congresso caso o Judiciário se arvore em legislador, ainda que o texto
constitucional, no artigo 103, parágrafo 2.º, proíba o Supremo Tribunal Federal
(STF) de legislar.
É como se, para o constituinte, o Judiciário fosse
infalível, sendo dispensado, portanto, de sofrer qualquer forma de controle
efetivo por parte dos demais Poderes. Seria a reedição do antigo Poder
Moderador, que não tem limites por não ter de responder a ninguém por seus
atos. Com um Poder assim, tão acima dos demais, não é de admirar que muitas
vezes suas reuniões se confundam com assembleias do Olimpo e que suas decisões
frequentemente contribuam para criar ou agravar crises. Afinal, só respeita
quem quer a vedação de legislar – e ultimamente é grande o número de juízes da
Corte que se orgulham de violar a Constituição.
Ademais, havendo questionamento sobre alguma decisão
regulamentar de autoridade judicial, cabe ao próprio Judiciário julgar sua
legalidade. É o caso, por exemplo, da infame extensão do auxílio-moradia a
todos os magistrados, decidida pelo Conselho Nacional de Justiça em 2014 a
partir de liminar do ministro do STF Luiz Fux. O contribuinte, sobre cujos
ombros recai a conta dessa benemerência, não tem como impedir que o pagamento
seja feito porque o Legislativo não tem poder para reformar as decisões
normativas do Judiciário. Apenas o Supremo poderia fazê-lo, mas não o faz.
Esse é apenas um entre muitos casos assombrosos que
tornam clara a necessidade de alguma forma de contrapeso institucional ao
Judiciário. Como esquecer que foi graças à inventividade do Supremo que a
presidente Dilma Rousseff foi cassada, mas teve seus direitos políticos
preservados? Ou que o Supremo suspendeu mandatos parlamentares a seu
bel-prazer, sem nenhum amparo constitucional?
Mas, quando surgem as críticas – pois criticar é o que
resta à sociedade, impotente diante da soberania autoimposta do Supremo –, os
ministros reclamam. Marco Aurélio Mello, por exemplo, queixou-se de que a Corte
está sofrendo um “patrulhamento sem igual” depois que inventou um salvo-conduto
para Lula da Silva, um corrupto condenado. Ou seja, o Supremo quer ter
protagonismo sem carregar o correspondente ônus.
Na falta de norma constitucional que permita ao
Legislativo reverter atos do Judiciário que invadam sua esfera de competência,
o Congresso muitas vezes opta por ignorar determinações do Supremo que o
afrontem, o que é uma inaceitável desmoralização institucional. Foi o que aconteceu,
por exemplo, quando, no final de 2016, o Supremo, por meio de liminar do
ministro Fux, mandou o Senado devolver à Câmara o pacote de dez medidas contra
a corrupção, sob o argumento de que os deputados as haviam desvirtuado. O
Senado resistiu a cumprir a ordem, pois se tratava de clara interferência em
seara parlamentar. O mesmo se deu, também no final de 2016, quando os senadores
ignoraram liminar do ministro Marco Aurélio Mello que mandava afastar Renan
Calheiros da presidência do Senado, pela óbvia razão de que uma decisão dessas
só poderia ser tomada pelos pares do senador.
Mas a mesma Constituição que deu ao Supremo esse caráter
excepcional é aquela que concede aos representantes do povo o poder de
interferir na qualidade da Corte. Basta que o Senado exerça bem sua função de
aprovar ou recusar os candidatos apresentados pelo presidente da República para
as vagas no Supremo, exigindo deles notório saber jurídico e reputação ilibada.
E isso, simplesmente, não tem sido feito.
Pode-se atribuir parte da atual crise institucional,
portanto, ao desleixo do Congresso, que deixa de fazer sua parte quando permite
que as vagas do Supremo sejam preenchidas por candidatos que simplesmente não
satisfazem os requisitos mínimos para integrar o principal tribunal do País. Há
lá quem seja notório pelo pouco saber jurídico, da mesma forma como há quem
tenha, impunemente, transgredido a lei até dizer chega. O resultado está à
vista de todos.
*Publicado no portal do jornal Estadão em 1º de abril de
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