Margarida, uma sobrevivente*
Eliane Cantanhêde
Geralmente você lê sobre
política aqui, mas hoje vou emprestar minha coluna para a Margarida*, de 48
anos. Ela é uma das mulheres vítimas de violência diariamente no Brasil. É uma
das milhares de mulheres que ao buscar ajuda não encontram acolhida - se deparam
com ainda mais violência. Entender a dimensão da violência contra a mulher é
urgente e diz respeito a todos - homens e mulheres.
Meu nome é Margarida *, sou empregada doméstica, tenho 48
anos, cinco filhos e uma história para contar. Eu era pouco mais que uma
menina, tinha 16 anos, quando levei o primeiro tapa na cara, ainda no terceiro
mês de namoro. Era um aviso, mas eu era muito jovem, muito ingênua, estava
apaixonada. Perdoei. Sabe como são essas coisas...
Casamos dois anos depois e só aí vi o que me esperava.
Quando eu estava grávida de sete meses do meu primeiro
filho, eu encontrei o meu marido com outra. Chorei muito, fui tomar
satisfações. Ele gritou, me deu tapas, socos e empurrões. Depois, sempre
arranjava um jeito de me bater e chegou a me jogar pedra na rua, na frente dos
vizinhos.
Um dia, ele parou de trabalhar, passava o dia inteiro sem
fazer nada e começou a comprar bebidas e fazer festas em casa. Eu trabalhava o
dia inteiro, numa fábrica de tecidos, e ainda cuidava da casa, da roupa, do meu
filho. Chegava tarde e ia fazer a comida, senão, ninguém comia.
A minha família sabia de tudo, mas todo mundo dizia:
“Você não quis casar com ele? Agora aguenta!”. Eu me sentia muito só, sem
saída, mas só decidi tomar uma atitude quando caiu a ficha de que ele ia acabar
me matando.
Foi quando a minha segunda filha estava com um ano, acho
até que nem tinha um ano ainda. Eu cheguei e ele estava com uma mulher dentro
da minha própria casa. Eu botei ela pra fora, começou uma briga e ele partiu
pra cima de mim com socos, empurrões, pontapés. Tudo na frente das crianças.
Aí, não deu mais. Eu pensei: “Meu Deus! O que que eu vou
fazer? Quem vai me ajudar?” Foi assim que eu procurei a Delegacia da Mulher,
mas foi a maior decepção da minha vida. Nunca mais acreditei na Justiça. Em vez
de me ajudar, a delegada mandou chamar o meu marido. Eu morrendo de medo, e ele
mentindo pra ela. Disse que eu não cuidava da casa, não queria saber de nada,
deixava os filhos jogados. E o pior é que ele disse que a casa em que a gente
morava era da família dele.
Sabem o que a delegada fez? Olhou na minha cara e disse:
“Se você se separar dele, você é que vai ter de sair de casa”. Eu me
apavorei e respondi: “Mas pra onde eu vou com meus filhos? Eu não tenho pra
onde ir!”.
A delegada parecia nem ouvir o que eu falava. Eu comecei
a gritar, desesperada, que ele ia me matar, que ninguém queria saber de mim. Aí
piorou tudo, porque a delegada disse que era desacato à autoridade e que ia me
prender. Eu chorava muito. Eu era a vítima, mas ela me tratava como se eu fosse
a culpada.
É claro que eu não podia voltar pra casa com ele. Ele ia
me bater, ia me matar, sei lá. Então, eu fugi. Deixei meus filhos com ele e
passei três dias debaixo de uma ponte, até que decidi procurar uma casa que
ajudava mães solteiras. Foi a minha sorte. Eles me arranjaram um emprego de
empregada doméstica. Eu tinha emprego, tinha onde dormir e onde comer. Só tive
de largar os meus filhos.
Fiquei anos separada deles, mas nunca deixei de ter
contato com eles, cuidar deles. Quando reconstruí minha vida, casei de novo e
tive uma casa de novo, os dois já estavam grandes e quiseram ir morar comigo.
Com o novo marido e todos os cinco filhos, eu continuo
trabalhando, vivendo a minha vida e acho que preciso contar a minha história,
porque tem muita mulher apanhando do marido e achando que não tem saída, que
está presa naquela situação e nunca vai conseguir sair dela. Vai, sim. Tem que
enfrentar, tem que ter coragem, mas dá certo, sim.
E o primeiro marido? Nunca aconteceu nada com ele.
Continuou na casa, bebendo, fazendo festas e todo mundo sabe que ele bate na
nova mulher. Acho que vai bater sempre. Deus queira que não mate ela.”
Entender o tamanho do
problema é urgente e diz respeito a todos nós. Informe-se, apoie e denuncie.
Outras colunistas do Estadão também cederam seus espaços.
*Publicado no Portal do jornal Estadão em 08/03/2018