Trump, nu e cru*
Os extremistas se consideram livres para externar seu
pensamento deletério, e o presidente americano não parece disposto a fazer
força para desmotivá-los
Os fanáticos de extrema direita que chocaram o mundo com
uma manifestação abertamente racista e antissemita em Charlottesville, na
Virgínia, no fim de semana, não viram necessidade de cobrir o rosto, como
faziam os membros da Ku Klux Klan, a organização racista americana. E o motivo
disso é simples: eles acreditam que um dos seus está hoje na presidência dos
Estados Unidos, com a cara à mostra, dizendo as mesmas coisas que eles dizem,
mudando apenas uma palavra ou outra em razão de conveniências políticas.
Afinal, o presidente Donald Trump não apenas foi incapaz
de condenar, com a necessária contundência, aquele ato hediondo, como revelou
certo apreço pelos extremistas, o que indica que ele começa a deixar de lado as
tais conveniências políticas que até agora o fizeram refrear a língua no limite
do discurso de ódio que tão bem caracteriza seus eleitores mais radicais.
A experiência histórica indica que líderes como Trump
chegam ao poder com o objetivo explícito de destruir a política tradicional,
aquela que pressupõe a convivência com os adversários ideológicos, e não sua
aniquilação. Trump, assim como fizeram os líderes dos regimes de vocação
totalitária do século passado, age como se pretendesse eliminar toda forma de
intermediação institucional com seus eleitores, criando neles um sentido de
pertencimento a uma comunidade nacional exclusiva – nela, não cabem os
inimigos, isto é, todos aqueles que não cumprem os requisitos raciais,
religiosos e nacionais para serem os “verdadeiros” americanos.
Quando Trump condena “ambos os lados” de um conflito em
que um desses lados é formado por grupos supremacistas brancos e neonazistas
armados, e o outro lado estava lá apenas para denunciar esse evidente atentado
contra os valores mais caros dos EUA, está claro que está comprometido com os
extremistas – e, para defendê-los, apelou para a mais rasteira equivalência
moral, ao dizer que “há gente muito boa dos dois lados”. Ficou difícil
encontrar quem poderia ser qualificado como “gente boa” entre os 700
manifestantes que gritavam palavras de ordem contra judeus, imigrantes e
negros, portando tochas para intimidar os inimigos e inebriar os simpatizantes,
como faziam os paramilitares nazistas na Alemanha dos anos 30.
Trump chegou à presidência dos Estados Unidos com uma
campanha que seduziu os americanos que se consideravam negligenciados pelos
poderosos clãs políticos de Washington. Era o outsider capaz de
denunciar os imigrantes como “estupradores” e “traficantes”, capaz de
questionar os efeitos da globalização e denunciar o predomínio dos predadores
de Wall Street, capaz de dar voz à classe média branca que perdeu poder
aquisitivo e se julgava injustiçada em relação a negros e latinos.
Os eleitores de Trump que desfilaram seu ódio em
Charlottesville foram encorajados por essa plataforma, tomada por eles ao pé da
letra. Não há razão para acreditar que será um incidente isolado. Infelizmente,
outros virão, porque, desde a eleição de Trump, os extremistas se consideram
livres para externar seu pensamento deletério, e o presidente americano não
parece disposto a fazer força para desmotivá-los. A imensa reação negativa no
país ao comportamento de Trump, inclusive entre aqueles que costumeiramente o
defendem na imprensa e no Partido Republicano, pode acabar servindo para que
ele e seus eleitores fanáticos se unam ainda mais, tornando mais errática a sua
já imprevisível e caótica administração.
Não causa espanto, apenas desgosto, que ainda existam nos
Estados Unidos, de forma organizada, grupos que defendem o nazismo, ideologia
genocida que o país combateu com vigor nas trincheiras da Europa na 2.ª Guerra
e que violenta de maneira cabal o próprio espírito americano. O que provoca
especial dissabor, para os amantes do mundo livre, é que o presidente dos
Estados Unidos, de quem se espera sempre a defesa intransigente dos valores
democráticos, se permita vincular-se a esses notórios liberticidas.
*Publicado no Portal Estadão em 17/08/2017