Lições da Venezuela*
O caos no país de Chávez e Maduro é um
alerta contra
salvadores da Pátria
Eliane Cantanhêde
A Venezuela está esfarelando espantosamente aqui ao lado,
mas a situação lá não tem a ver com a situação cá e vai enterrando a ideia, ou
ameaça, de que o Brasil viraria “uma Venezuela”. Apesar disso, temos muito o
que aprender no país vizinho.
Há três enganos quando se olha para a Venezuela e se
depara com a fome, o desabastecimento, o descalabro, o ridículo, os tumultos e
as mortes: achar que toda essa tragédia é resultado só de Hugo Chávez, que
Chávez era um boçal e que a aproximação do Brasil com o regime começou com Lula
e o PT.
A tragédia venezuelana vem sendo costurada há décadas,
desde quando o país era um dos mais ricos da América do Sul, mas usava
perdulariamente os recursos do petróleo e se jogava nos braços dos Estados
Unidos. Mesquinha, a elite empresarial se gabava de só tomar água importada.
Sentada no petróleo estatal, a burocracia enlameou-se de corrupção e contaminou
as instituições. E ninguém cuidou de converter os recursos que jorravam do
petróleo em planta industrial, desenvolvimento, justiça social, futuro, enfim.
Chávez foi resultado de tudo isso. Engana-se quem pensa
que ele era um tosco, um ignorante. Era um estrategista. Militar, tentou dar um
golpe de Estado em 1992, aproveitou os anos de cadeia para aprimorar a leitura
e saiu decidido a bombardear o sistema com as armas do próprio sistema. Criou
um partido, seduziu as Forças Armadas e aliou-se a setores tradicionais da
esquerda para atacar os doentios Executivo, Legislativo e Judiciário na arena
da democracia formal e se eleger quatro vezes.
Sobreviveu aos protestos e ao golpe frustrado dos
derrotados, mas não ao erro comum aos ditadores: achar que eles não só sabem
tudo, como só eles sabem tudo. O projeto de Chávez fazia sentido, mas não
resistiu ao próprio Chávez e implodiu dolorosamente com o desqualificado
Nicolás Maduro.
A ideia bolivarianista de virar as costas para os Estados
Unidos e de frente para a América do Sul significou automaticamente ficar cara
a cara com o Brasil e com o então presidente FHC, a quem Chávez chamava de “mi
maestro”, e os dois abriram as portas da Venezuela para as empresas
brasileiras. O país tinha dinheiro e não produzia nada, o Brasil precisava de
dinheiro e produzia de produtos agrícolas a ônibus e aviões.
Um bom casamento, que foi ao auge com o impulso
ideológico de Lula e Dilma e se tornou perigosamente incondicional, mesmo
quando o regime saiu dos trilhos. Hoje, faltam comida, remédio, emprego e
futuro. O Brasil de Temer caiu fora, a Venezuela vive um caos.
O Brasil também convive historicamente com elites
gananciosas, excesso de estatismo, desigualdade social cruel e corrupção
crônica, mas, ao contrário da Venezuela de ontem e de hoje, tem instituições
sólidas, planta industrial, uma das agriculturas mais pujantes do mundo,
sociedade complexa e bem informada e adequação ao sistema internacional. Até
por isso, o “nós contra eles” nunca vingou com a dimensão que assumiu lá.
Então, o que a Venezuela tem a ver? Afora a questão
geoestratégica, temos muito o que observar, pois, mal comparando, o Brasil está
num estágio pré-Chávez, com colapso do sistema político, corrupção a céu
aberto, empresas privadas absolutamente fora de controle e o desarranjo da
máquina pública e das estatais. Detalhe: a PDVSA foi o eixo das grandes
guinadas na Venezuela, como a Petrobrás está sendo no Brasil.
Lá, o caos produziu um caos ainda maior e o que mais
temos a aprender com a Venezuela é que combater a corrupção é fundamental, mas
implodir as instituições e a política não é salvação. Ao contrário, pode ser a
perdição. Que aqui não surjam Chávez, Maduros ou qualquer tipo de salvador da
Pátria, aproveitando-se da desilusão e da terra arrasada.
*Publicado no Portal Estadão em 23/04/2017