Delação à vista*
Eliane Cantanhêde
Não há um só político, um só agente público e um só jornalista
em Brasília e no Rio de Janeiro, no mínimo, que não saiba exatamente quem é
Eduardo Cunha, não tenha ouvido falar de sua ousadia sem limite, seus métodos
de intimidação e sua relação para lá de heterodoxa com a coisa pública. O que
espanta, portanto, não é a sua prisão, mas o fato de ele ter sobrevivido e
voado tão alto nesses 25 anos, apesar de tudo.
Cunha emergiu em 1989, surfando no velho PRN e na
campanha de Fernando Collor de Mello. Eleito Collor, foi presidente da Telerj,
onde foi acusado de... fraudes em licitações e contratos. Já no também velho
PPB, foi subsecretário de Habitação do Rio e depois presidente da Companhia
Estadual de Habitação (Cehab) no governo Anthony Garotinho, onde também foi
acusado de... fraudes em licitações e contratos.
A (má) fama de Cunha completa assim 25 anos e já corria
mundo quando, em 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso recusou o
nome dele para diretor comercial, justamente, da Petrobrás. Segundo anotações
do próprio FHC, registradas no livro Diários da Presidência, ele ouviu e
reagiu: “Imagina!”.
Por tudo isso, não há nenhuma surpresa na prisão de Cunha
agora, mas é um espanto, um escândalo, absolutamente inacreditável que ele
tenha galgado degrau por degrau a vida política, até se eleger deputado federal
em 2002 e chegar em 2015 a presidente da Câmara, o segundo cargo na linha
sucessória da Presidência da República.
O céu era o limite para ele, que se filiou ao PMDB em
2003, primeiro ano de Lula, e passou a comprar sua bancada suprapartidária
particular e a engordar os tais trustes no exterior com os mesmos métodos de
sempre – fraudes em licitações e contratos. Tudo com um objetivo, ou obsessão:
subir a rampa do Planalto como presidente do Brasil.
Pergunta que não quer calar: o que falhou no sistema
político, nos filtros partidários, na fiscalização dos órgãos públicos e na
Justiça, para que durante duas décadas e meia um personagem assim continuasse
vivo politicamente, vitorioso e fazendo o que sempre fez a vida toda, ora com
navios-sonda da Petrobrás, ora com contratos na África, ora com o FI-FGTS? O
que dizem o PMDB, o MP, a PF, a Justiça e o Congresso, que cria as leis?
Há algo profundamente errado neste reino que não é da
Dinamarca, tanto que Collor, alavanca de Cunha na vida pública, sofreu
impeachment, viveu nababescamente seus anos de inelegibilidade, voltou como
senador por Alagoas, ganhou as bênçãos de Lula e hoje é acusado de 30 crimes
pela PGR e alvo de seis investigações no mesmo Supremo que o absolvera antes.
Os troféus de Cunha são hotéis, joias e bolsas pagas a
peso de ouro para sua mulher, Cláudia Cruz. Os de Collor são carrões e quadros,
como um Di Cavalcanti de mais de R$ 1 milhão. É ou não rir na cara da
gente? Aliás, o que pensam hoje os “caras-pintadas”?
Condenar Eduardo Cunha e Fernando Collor não é a solução,
é só parte da solução, porque eles são resultado de um sistema que facilita a
corrupção, premia os corruptos e enaltece a “esperteza”. A Lava Jato e esse
extraordinário processo de depuração por que passa o Brasil não podem ser
contra apenas pessoas, mas principalmente contra um sistema em que germinam,
crescem e engordam essas pessoas.
Se Cunha vai fazer delação premiada? Não tenha a mínima
dúvida. Ele vai. E, como dizem o deputado Miro Teixeira (Rede-RJ) e a senadora
Ana Amélia (PP-RS), ele conhece como poucos as entranhas do poder. Que conte
tudo e dê nome aos bois, “duela a quem duela”, a la Collor.
O Planalto treme, porque Cunha não é um a mais no PMDB, é
da cúpula do partido e, dentro dela, do grupo do presidente Michel Temer. E é
aquela velha história: quem não deve não teme – nem treme.
*Publicado no Portal Estadão em 21/10/2016