Avanços e recuos
Eliane Cantanhêde
O Congresso dá uma no cravo e outra na ferradura. Na
Câmara, a Comissão Especial que analisa as dez medidas anticorrupção propostas
por procuradores avança a olhos vistos. Mas, no Senado, o PMDB embala uma
mudança da lei de abuso de autoridade vista como uma ofensiva contra os mesmos
procuradores e a Lava Jato. As dez medidas preveem maior rigor com os crimes e
criminosos de colarinho branco. Já a nova lei de abuso de autoridade visa
cortar as asinhas justamente de quem tenta combater... os crimes e criminosos
de colarinho branco. Um cruzamento revelador.
A Comissão deve atingir mais de cem depoentes nesta
semana, incluindo o juiz Sérgio Moro, procuradores, delegados, agentes da
Receita, professores, jornalistas e representantes da “sociedade civil”. No
Senado, quem apadrinha a nova lei de abuso de autoridade são dois alvos
lustrosos da Lava Jato: o presidente Renan Calheiros e o ex-ministro Romero Jucá,
ambos do PMDB.
Renan classifica a Lava Jato como “avanço civilizatório”,
mas o Supremo já instaurou o sétimo (sétimo!) inquérito sobre sua participação
em desvios da Petrobrás. E Jucá encerrou uma passagem meteórica pelo
Planejamento no governo Temer por causa de uma fita em que fala de um “pacto
para estancar a sangria”. Ele jura que a “sangria”, no caso, era a crise
econômica, mas a suspeita é que ele se referia aos estragos da Lava Jato nos
políticos.
É fundamental garantir justiça, direitos individuais e
coletivos e impedir linchamentos de quem quer que seja - inclusive de
corruptos. Para isso, é necessário tanto combater a impunidade, de um lado,
quanto evitar excessos e abusos da Justiça, Ministério Público, Polícia
Federal, Receita e imprensa, do outro. Trucidar reputações e condenar com
ligeireza não é fazer justiça, ao contrário. Mas, posta a ressalva, há que se
reconhecer o desequilíbrio histórico a favor da impunidade e contra a ação da
autoridade.
Corruptos e corruptores sempre tiveram leis, processos
penais, prazos, agentes públicos e uma “justiça” direcionados para proteger o
poder, a riqueza e a impunidade, enquanto as instituições sustentadas pelo
Estado e pela sociedade conviviam com falta de condições, de autonomia e de
instrumentos, até mesmo legais, para uma justiça sem aspas.
Essa situação vem se invertendo lentamente desde a
redemocratização, até que, hoje, corruptos estão em baixa, combatentes da
corrupção estão em alta.
É preciso aperfeiçoar esse processo e avançar, jamais
retroceder. Por isso, é preciso ficar de olho tanto nas dez propostas que
correm na Câmara como nas alterações que o Senado tenta fazer na lei de abuso
de autoridade.
Isso, sem perder de vista a repatriação de recursos não
declarados. Para a área econômica, abrandar impostos e multas traz o dinheiro
de volta e reforça o Tesouro, mas a força-tarefa da Lava jato critica premiar
quem fraudou o fisco e suspeita que a inclusão de parentes de políticos – como
tentam fazer agora - possa beneficiar quem cometeu crimes piores, como
corrupção. Debate interessante.
Lembrança: por 20 anos, o PT virou o combatente-mor da
corrupção em aliança com o MP, a mídia e funcionários públicos exemplares.
Bastou subir a rampa do Planalto com Lula em 2003 para se virar contra os
aliados e propor, em sequência, a “lei da Mordaça” (contra o MP), uma lei para
punir vazamentos de órgãos públicos (contra funcionários) e o “controle social
da mídia” (contra jornalistas e meios). O que foi bom para o PT contra os
adversários não poderia mais valer contra o próprio PT no poder.
Moral da história: “conter abuso de autoridades” pode ser
pretexto para embutir algo bem menos nobre, como facilitar desvios e garantir a
velha e conhecida impunidade que sempre reinou nesta nossa República.
Publicado no Portal Estadão em 16/10/2016