A cultura da boca-livre*
O escândalo do desvio de recursos públicos para
atividades que nada têm a ver com o estímulo à cultura, conforme apurou a
Operação Boca Livre da Polícia Federal (PF), tende a radicalizar a discussão em
torno da chamada Lei Rouanet, que gera controvérsia desde que foi aprovada, em
dezembro de 1991. Não é para menos: afinal, quando até uma festa de casamento é
bancada com recursos oriundos de renúncia fiscal, é porque alguma coisa está
muito errada.
A operação da PF desmontou um esquema que funcionava
desde 2001 e fraudava o processo por meio do qual o Ministério da Cultura
(MinC) libera o benefício a quem o solicita. Segundo as investigações, os
operadores do esquema apresentaram projetos culturais falsos e dessa forma
obtiveram cerca de R$ 180 milhões. A tal festa de casamento, por exemplo,
recebeu os recursos porque foi disfarçada de show.
Está claro que essa quadrilha pôde agir por 15 anos
porque a fiscalização é frouxa, e talvez seja esse o maior problema da Lei
Rouanet. O benefício tem sido concedido a projetos que jamais poderiam ser
enquadrados na categoria de “fomento à cultura”.
O estímulo oficial à criação artística e ao
desenvolvimento cultural, seja por meio de recursos advindos de renúncia
fiscal, seja por investimentos diretos do governo, é indispensável como
instrumento auxiliar para, entre outros objetivos, a formação da identidade
cultural de um povo. A Lei Rouanet, ao longo de seus 25 anos de existência, tem
cumprido esse objetivo. Apresenta, no entanto, graves distorções que precisam
ser corrigidas, inclusive aquelas que dão margem a fraudes.
Para que venha a se beneficiar da Lei Rouanet é preciso
que um produtor cultural submeta um projeto detalhado ao MinC, informando o
montante de recursos financeiros que pleiteia. Uma comissão de técnicos analisa
a proposta tanto do ponto de vista técnico quanto de seus objetivos culturais e
aprova, ou não, a captação pelo pleiteante, junto às empresas privadas, da
verba aprovada. Esse dinheiro é descontado pelo patrocinador de seu Imposto de
Renda devido como pessoa jurídica.
Quando, em 2009, tentava negociar com o Congresso a
reforma da Lei Rouanet, o então ministro da Cultura, Juca Ferreira, argumentava
que a maior distorção do sistema estava na captação dos recursos junto à
iniciativa privada, cujos departamentos de marketing tinham o poder de definir
os projetos de sua preferência. Como consequência, dizia então o MinC, cerca de
80% dos recursos captados pelos projetos aprovados beneficiavam o Sudeste. É
verdade, consequência do fato óbvio de que é em Regiões Metropolitanas como as
de São Paulo e Rio de Janeiro que se concentra a maior parte do público-alvo
das empresas. Seus departamentos de marketing, portanto, fazem o que deles se
espera e pouco têm a ver com a difusão da cultura.
Mas é verdade também – e esse é o fulcro da questão – que
os projetos que as empresas aceitam patrocinar para se beneficiarem da renúncia
fiscal são aqueles, e somente aqueles, que o MinC aprova. A distorção,
portanto, não está na captação, mas na aprovação dos projetos.
É claro que não faz sentido patrocinar com recursos
públicos espetáculos de artistas consagrados que por definição podem contar com
a bilheteria para cobrir seus custos e remunerar seu talento. É claro também
que em momentos de crise como o que vivemos é muito difícil, até para
celebridades, contar apenas com bilheteria. Mas, quando se trata de recursos
públicos, é preciso estabelecer prioridades. A questão central, então, é que é
indispensável o aporte de recursos públicos para a criação artístico-cultural,
mas esses recursos devem se concentrar no fomento da atividade criativa – o que
implica prioritariamente pesquisa, inovação e qualificação profissional – e não
no espetáculo, o que significa a submissão de um programa de governo no campo
cultural ao efeito perverso da lógica do mercado. Para não falar da falta de
fiscalização, que beneficia as escandalosas bocas-livres.
*Publicado no Estadão de 30/06/2016