A moral do empreiteiro
Gazeta do Povo
04/09/2015
Está certo que o caso do petrolão, investigado
pela Operação Lava Jato, deveria ocupar as páginas policiais, mas, até por uma
questão de dignidade própria, o presidente da empreiteira Odebrecht, Marcelo
Odebrecht, poderia ter evitado o jargão das delegacias e das organizações
criminosas. Ao prestar depoimento à CPI da Petrobras – em audiência realizada
quarta-feira em Curitiba, onde se encontra preso desde junho –, o empresário
afirmou não ser “dedo-duro” e que, por ser esta uma questão moral, não aceitará
fazer acordo de delação premiada.
Odebrecht pode dar o nome que quiser à
colaboração nas investigações. “Dedurar” até seria um bom sinônimo se o verbo
for entendido como um ato de alguém disposto a desnudar as entranhas da
corrupção na Petrobras e indicar os nomes de quem participava do esquema de
propinas. Ressalve-se, porém, que o empreiteiro diz que não se prestará a
dedurar ou a abraçar a delação premiada, visto que nem ele nem suas empresas ou
funcionários tiveram qualquer participação delinquente nas relações contratuais
com a Petrobras, seus servidores ou, indiretamente, com políticos.
Dê-se ao réu o benefício da dúvida. Ainda não
julgado nem condenado pela Justiça, admita-se a possibilidade de ser inocente e
desconhecer os fatos arrolados nas investigações que envolvem o cartel de
empresas do qual a Odebrecht faria parte – item que ele também nega. Sendo
assim, de fato nem teria a quem “dedurar” e nem motivos para aderir ao
instituto da delação premiada.
Entretanto, é no mínimo questionável a analogia que faz entre
“dedurismo” e colaboração premiada, invocando supostos valores morais para não
compactuar com nenhuma das duas formas. Ao fazer uma comparação com uma briga
entre suas filhas, na qual o empreiteiro puniria com mais rigor aquela que
entregou a irmã e não aquela que efetivamente fez algo errado, Odebrecht mostra
valorizar o comportamento típico da omertà, aquele código de honra que obriga ao silêncio absoluto os membros
jurados das organizações mafiosas. Já a delação é um instrumento legal que
garante aos acusados de crimes a redução das penas a que estariam sujeitos caso
suas denúncias sejam úteis e comprovadas. Mas, enquanto se dá ao silêncio uma
avaliação moral positiva nas organizações criminosas, punindo-se rigorosamente
o membro que o transgrida, a recusa à delação pode se constituir num ato de
imoralidade na medida em que serve à proteção de outros criminosos.
Marcelo Odebrecht está bem acompanhado neste
entendimento primitivo. É de autoria da presidente Dilma Rousseff – quando sua
biografia foi tisnada por citações de investigados na Lava Jato – uma frase que
ganhou manchetes: “não respeito delatores”. Tratou-se da mesma e proposital
confusão mental, uma comparação descabida. Quando prisioneira sob tortura
durante o regime militar, não delatar companheiros era (e é) um elogiável ato
de altruísmo; já a delação premiada provém de um ato legal por ela mesma
sancionado como forma de dar mais eficiência ao combate à corrupção e à
criminalidade. Uma situação e outra devem ser medidas por réguas morais
diferentes.
Não é o caso do empreiteiro encrencado na Lava
Jato. Delatar ou “dedurar” – como queira entender Marcelo Odebrecht – são
sinônimos que ganham o mesmo sentido moral, isto é, o de contribuir para a
elucidação de fatos supostamente delituosos e a identificação de agentes
públicos ou privados que eventualmente neles tenham tido participação ativa ou
passiva. Uma ética em que ajudar a descobrir a verdade é moralmente pior que
cometer crimes ou silenciar sobre eles é uma ética torta.
Conhecido entre os seus como “o príncipe”, o
empreiteiro Odebrecht comportou-se como tal durante a sessão da CPI. Seus
tortuosos conceitos sobre moralidade não causaram nenhum constrangimento aos
deputados que o ouviram – pois mais convincente que seus argumentos talvez seja
a generosidade com que sua empresa costuma premiar campanhas eleitorais, com
doações que chegaram a R$ 100 milhões apenas no ano de 2014.