Escolhendo o inimigo
Eliane Cantanhêde
Quase ninguém percebeu,
mas o governo Temer e o PT assumiram um
discurso parecido diante do caos que a paralisação dos caminhoneiros gerou no
País inteiro. Para os dois ex-parceiros de poder, agora inimigos ruidosos, o
protesto dos caminhoneiros é “justo” e os verdadeiros culpados são os donos das
transportadoras. A uns, solidariedade; aos outros, a lei.
Em nota, o partido
de Lula condenou as empresas de
transporte, “que se aproveitaram do movimento para realizar um locaute”. Em
entrevista no Planalto, ministros destacaram que greve de trabalhador é legal,
mas locaute de patrão é crime. Raul Jungmann, da Segurança, enumerou imputações
e penas: incitação à violência, tantos anos, ameaça à segurança dos
trabalhadores, mais tantos...
O presidente Michel Temer
abriu a sexta-feira anunciando o uso de “forças federais” e atacou a “minoria
radical” que ignorou o acordo com o governo e manteve a paralisação. Seus
ministros, porém, deixaram os radicais para lá e, cuidadosos com os caminheiros
que impõem ao País falta de comida, remédios, água e combustíveis, anunciaram
medidas duras contra seus patrões.
Carlos Marun, da
Articulação Política, disse que o governo optou pela negociação “por entender
justas as reivindicações”. Eliseu Padilha, da Casa Civil, até elogiou: “O
movimento foi plenamente exitoso”. Enquanto isso, o Conselho Administrativo de
Defesa Econômica (Cade) investiga as empresas de transportes e a Polícia
Federal convoca vinte empresários do setor para depor.
E por que os adversários
PT e governo assumiram esse mesmo discurso? Primeiro, porque a população, já
exausta de corrupção e abusos, e também atingida diretamente pelos aumentos de
combustíveis, identifica-se com os caminhoneiros, trabalhadores e vítimas como
ela própria.
Mas a coisa muda de figura
quando a população percebe, ou é devidamente informada, que são patrões
oportunistas e aproveitadores que estão criando o caos, impondo as filas em
postos de combustíveis, cancelando ônibus e voos e ameaçando hospitais, o
fornecimento de comida e água.
Até por isso, uma palavra
mágica no Planalto foi “desabastecimento”. Quem fica feliz e aplaude a falta de
tudo? Nesse espírito, e bem treinado antes, o primeiro militar a assumir a
Defesa, general Silva Luna, justificou assim o uso das Forças Armadas em todo o
território nacional: “Para garantir o abastecimento”.
As reações do governo e do
PT têm um alvo poderoso: a opinião pública. Mas o governo esconde, e o PT
assumiu explicitamente, um temor de “aventuras autoritárias”. E, evidentemente,
o efeito nas eleições de outubro. Como o movimento remexeu o mau humor nacional,
e a esquerda e as bandeiras vermelhas de PT, CUT, MST... estão ausentes nos
caminhões parados de Norte a Sul, é razoável supor que tudo isso possa
favorecer Jair Bolsonaro. Aí, bate o pânico.
Nesse inferno, o governo
ficou entre a cruz e a espada ao
negociar suspensão e “previsibilidade” de reajustes, mas sem piorar as perdas
da Petrobrás, de muitos bilhões na Bolsa e também de credibilidade: voltou a
ingerência populista na política de preços da companhia, que, em horas, deixou
novamente de ser a número 1? Assim, o governo interfere nos reajustes, viu,
caminhoneiro, viu, sociedade? Mas arcando com o grosso do prejuízo, viu,
investidor, viu, acionista?
Há, porém, um problema aí:
essa engenhosa negociação é para o diesel. E a gasolina, que bate direto no
bolso do cidadão e da cidadã? A resposta do governo é que não é por causa da
gasolina, e sim do diesel, que sobem os preços da carne, dos ovos, de toda a
cadeia produtiva. Ok. Agora, vai lá combinar com os russos. Ou explicar o litro
a R$ 5 para quem tem pouca opção e precisa encher o tanque para tocar a vida.
Publicado no portal do
Jornal Estado de São Paulo em 27/05/2018