Tábata Viapiana
A cena integra um dos episódios da série “O Mecanismo”,
produzida pela Netflix com base na operação Lava Jato, mas se ajusta com
perfeição ao momento atual do País e constitui o retrato mais bem acabado da
imagem ostentada hoje pela Suprema Corte brasileira. Nela, investigados atrás das
grades vibram, a verter lágrimas de emoção, como se tivessem acertado as seis
dezenas da loteria, ao anúncio da mais alvissareira notícia que poderiam
receber: a de que seus processos haviam deixado a primeira instância e sido
enviados ao Supremo Tribunal Federal. “Foi pro Supremooo, estamos livres, vai
todo mundo embora. Foi pro Supremooo”, gritam. A ficção, de fato, imitou a
vida. Na última semana, o STF cometeu talvez a maior de suas estultices, ao
adiar o julgamento do mérito do habeas corpus (HC) de Lula e conceder-lhe a
liminar casuística de salvo conduto. Estabeleceu o que se convencionou chamar
no meio jurídico de “princípio Lula” por meio do qual foi escancarada a
porteira da cadeia a todos que se enquadram em situação igual ou semelhante à
do petista, incluindo condenados de todo o naipe, entre criminosos do colarinho
branco, traficantes e até pedófilos. Nesta semana, ao examinar o teor do HC do
ex-presidente petista, já condenado à prisão pelo TRF-4, o STF terá a
oportunidade de reparar o erro. Ou agravá-lo. É da lavra do poeta francês Jean
Cocteau a famosa frase que reflete o estágio máximo da coragem e ousadia: “não
sabendo que era impossível, foi lá e fez”. Pois na quarta-feira 4 o STF terá de
ter audácia para ir lá e completar a barbaridade da sessão anterior, mesmo
debaixo do escrutínio dos brasileiros, mesmo com todos sabendo que era
possível, por mais insensato e contrário aos princípios republicanos que possa
parecer. Se o Supremo reverenciar a impunidade e decidir que o crime compensa
no País, sobre a Lava Jato não restará pedra sobre pedra. Para sempre restará
consagrado o vaticínio de Romero Jucá, segundo o qual era arquitetado “…um
grande acordo nacional. Com o Supremo, com tudo” para livrar toda a classe
política, sem distinção partidária e preferência ideológica, da prisão.
Um dos idealizadores da República brasileira, o jurista
Ruy Barbosa dizia que uma “justiça atrasada não é justiça, senão injustiça
qualificada e manifesta”. É o que acontecerá caso o STF revise o entendimento
da prisão após condenação em segunda instância: o País terá definitivamente uma
justiça atrasada, o que configura, como disse Ruy Barbosa, pura injustiça. E,
então, diversos encarcerados responsáveis pelos mais diversos crimes, poderão
fazer como os personagens da série dirigida por José Padilha: comemorar
efusivamente.
Atualmente, 193 dos 194 países pertencentes à ONU adotam
como regra a possibilidade de prisão após condenação em primeira ou segunda
instância. Na história recente do Brasil, também foi assim. Desde 1941, o
Código de Processo Penal prevê a execução da pena depois de condenação em
segundo grau. Somente em 2009, por puro casuísmo, em razão do mensalão, o STF
mudou o entendimento. Para alguém ser preso, o caso deveria ter transitado em
julgado. Em 2016, o Supremo corrigiu o equívoco e retomou o que sempre foi
regra aqui e na maioria do planeta: a prisão após o julgamento na segunda
jurisdição. Agora, para livrar da cadeia o ex-presidente Lula, condenado a 12
anos e um mês de prisão, um grupo expressivo de ministros do STF guerreia pelo
retrocesso.
Entre os que podem se beneficiar do “princípio Lula”
estão corruptos como o ex-deputado Eduardo Cunha, o ex-governador do Rio de
Janeiro Sérgio Cabral, o ex-ministro Antônio Palocci e o ex-diretor da Petrobras,
Renato Duque. Cunha já foi condenado por receber propinas de US$ 1,5 milhão. É
investigado por irregularidades não só na Petrobras, mas também na Caixa
Econômica. Palocci é apontado como interlocutor da Odebrecht junto ao PT. Tinha
uma conta de propina em seu nome. Movimentou mais de R$ 128 milhões em recursos
ilícitos. Sérgio Cabral é recordista de processos na Lava Jato. São 21 – sendo
que em 16 já houve sentença. As penas, somadas, chegam a 100 anos de prisão,
por liderar um esquema de corrupção que lesou por anos os cofres do Rio e levou
o estado a uma situação de calamidade pública. Ex-diretor de Serviços da
Petrobras, Renato Duque também ostenta condenação quase secular: 73 anos e 7
meses de cadeia.
No cenário desolador, o ex-ministro José Dirceu, punido
com quase 42 anos de prisão, pode nem voltar à cadeia. Condenado em segunda
instância, ele aguarda julgamento de embargos infringentes pelo Tribunal
Regional Federal da 4ª Região. É o último passo antes da execução da pena – o
que pode não acontecer se o STF decidir a favor de Lula. Até mesmo quem ainda
não foi condenado poderá buscar o mesmo recurso no futuro, como os ex-ministros
Geddel Vieira Lima e Henrique Alves, investigados por crimes de corrupção.
Geddel foi preso após a Polícia Federal encontrar mais de R$ 51 milhões em um
apartamento em Salvador, na maior apreensão de dinheiro em espécie da história
da PF.
O próprio Lula contabiliza inúmeras pendências jurídicas
para além do caso do tríplex do Guarujá. Na Justiça Federal do Paraná, ele responde
a outros dois processos, por recebimento de propinas na reforma no sítio de
Atibaia, pela compra de um terreno para o Instituto Lula e aluguel de um
apartamento em São Bernardo. No Distrito Federal, são mais quatro ações penais
por crimes como obstrução à Justiça, tráfico de influência, lavagem de dinheiro
e organização criminosa. Há ainda duas denúncias pendentes de análise da
Justiça. Uma delas é a do “quadrilhão do PT”, que aponta Lula como o grande
líder de uma organização criminosa que desviou milhões de reais dos cofres
públicos.
Mesmo fora da Lava Jato, o “princípio Lula” já deu
demonstrações claras de seu alcance deletério. Em Brasília, um homem acusado de
ter roubado um automóvel foi solto na terça-feira 27 – um pedido do promotor
Valmir Soares Santos. Ele alegou que, se Lula não pode ser preso por um atraso
da Justiça, aos demais cabe o mesmo destino. É o efeito erga omnes, que em
latim significa “vale para todos”. No caso, o homem estava preso aguardando a
conclusão de perícias e o promotor entendeu que o suspeito não poderia ser
prejudicado por um atraso do Estado, assim como aconteceu com Lula. Abriu-se a
porteira. Mais presos se apressam em solicitar a mesma jurisprudência aplicada
ao petista. “Do ponto de vista da defesa de outros acusados, o julgamento do
habeas corpus vai representar um precedente”, disse à ISTOÉ o advogado Pedro
Iokoi. A urgência em analisar o habeas corpus de um ex-presidente da República
também amplificou o tom das críticas ao Supremo. “Nos sentimos envergonhados”,
disse o desembargador Antônio Souza Prudente, do Tribunal Regional Federal da
1ª Região. Segundo ele, uma decisão a favor de Lula será uma afronta aos juízes
de segundo grau.
Entre os magistrados, o juiz Sergio Moro é o maior
entusiasta da prisão em segunda instância. Para ele, a cadeia após esgotadas
todas as possibilidades de recursos gera impunidade, especialmente para
criminosos poderosos, um dos poucos brasileiros em condições de contratar os
melhores advogados do País para explorar as brechas da lei. “Seria ótimo
esperar o julgamento até a última instância, mas no nosso sistema processual,
extremamente generoso em recursos, isso representa um desastre. Temos processos
que se arrastam por décadas e crimes prescrevendo”, afirmou em entrevista ao
Roda Viva. Somente na Vara Federal em que atua, a 13ª de Curitiba, há 114
pessoas cumprindo pena após condenações em segunda instância. Não somente
condenados por corrupção. Também traficantes e pedófilos. Na Lava Jato, são 12
os condenados em segunda instância cumprindo pena. Diante da perspectiva de
reversão do quadro, Moro tem enviado recados ao STF. O posicionamento do juiz
incomodou alguns ministros, como Marco Aurélio Mello: “Tempos estranhos em que
um juiz de primeiro grau faz apelos a ministros do STF”. Tempos estranhos são
aqueles em que os mimos e elogios de uma homenagem são mais importantes do que
um exame de tamanha repercussão, como o do HC de Lula. Marco Aurélio foi o pivô
da manobra protelatória da análise do HC na quinta-feira 22, que a empurrou
para 4 de abril. Com viagem marcada para o Rio de Janeiro para receber uma
comenda, ele defendeu a interrupção do julgamento. Como ele, mais quatro
ministros estavam com passagens aéreas compradas para a mesma noite. Nos
últimos dias, o ministro sentiu o pulso das ruas. Foi bombardeado por mensagens
de protesto. Resultado: teve que excluir endereços de e-mail e mudar telefones.
Como se nota, todas as atenções estarão voltadas para a
sessão de 4 de abril no STF. Por mais inacreditável que pareça ainda cogita-se
um pedido de vistas de um ministro companheiro, o que jogaria para as calendas
o julgamento definitivo de Lula. Se o petista sagrar-se vitorioso, o Supremo
transmitirá uma mensagem negativa aos brasileiros. “No Brasil, o mundo jurídico
não reage à altura dos erros do Supremo”, disse, certa feita, o ex-presidente
do STF, Antonio Cezar Peluso. Não reagia. Hoje não só o mundo jurídico como a
sociedade observa o tribunal, e suas decisões, com lupa. E, sim, promovem o
contraponto à estatura da Corte. Que o STF não cometa o desatino de conferir um
salvo conduto à classe política como um todo. É como diria Martin Luther King:
“A injustiça num lugar qualquer é uma ameaça à justiça em todo o lugar”. Que
seja feita Justiça.
*Texto de Tabata Viapiana publicado no portal da Revista
IstoÉ em 03/04/2018