A utopia como blindagem da realidade*
Como o socialismo já virou uma seita ideológica ou uma
religião política, nenhum fracasso histórico impede o crente de abraçar a causa
Rodrigo Constantino**
O que leva alguém a defender o comunismo e o socialismo?
Quando excluímos o puro rancor e a inveja mesquinha de quem não suporta o
sucesso alheio, ou o oportunismo canalha e a sede de poder de quem só quer se
dar bem, o que sobra? Basicamente, o romantismo, uma sensibilidade mal
calibrada, a ignorância a serviço de boas intenções. O sujeito olha o mundo
real, com tantas injustiças, e conclui que é preciso pregar maior igualdade,
defender os pobres e oprimidos. Escorrega no escuro até chegar ao socialismo no
fundo do poço.
É o monopólio das virtudes, dos fins nobres. O sujeito
não precisa refletir muito sobre como chegar aonde quer chegar, não
tem de estudar economia e história para verificar o que aconteceu em outras
experiências socialistas e o que explica a riqueza das nações, nada disso.
Basta ele aderir ao socialismo e pronto: ele sente que está lutando
por todas as minorias injustiçadas e contra as elites insensíveis.
Como o socialismo já virou uma seita ideológica ou uma
religião política, e como há uma máquina de propaganda por trás dessa utopia,
nenhum fracasso histórico impede o crente de abraçar a causa. China, União
Soviética, Coreia do Norte, Camboja, Cuba, Alemanha Oriental, Angola,
Moçambique, Iugoslávia, os países do Leste Europeu e tantos outros casos, todos
terminando basicamente da mesma forma trágica.
Não importa. O comunismo continua protegido do mundo
real, do “socialismo real”, e a culpa é transferida para aquelas lideranças que
se desviaram do curso e da revolução, que traíram a causa, que se venderam.
Deturparam Marx, dizem. E logo parecem prontos para uma nova tentativa, para
usar novas cobaias em seus experimentos, para criar o “novo homem” e o “novo
mundo possível”.
Chegamos, então, à Venezuela. O caos é total. A miséria
se espalhou pelo país, apesar das vastas reservas de petróleo. A violência saiu
de controle, e o governo partiu para a opressão sem qualquer respeito pelo
cidadão e pela democracia. Opositores são sequestrados e desaparecem, jovens
estudantes que protestam pedindo liberdade são mortos. A Venezuela já é uma
ditadura, a nova ditadura socialista, e se junta à extensa lista acima. O
“socialismo do século 21”, afinal, não difere tanto de seu antecessor.
Mas o que vemos na narrativa presente nos principais jornais,
nas universidades, na política? Aqueles que não apoiam mais Maduro, os que
culpam apenas Maduro e nada mais. É como se um maluco tivesse adotado tais
práticas tirânicas do nada, destruindo a democracia, e esse fosse o
grande problema. É como se houvesse febre sem doença, efeito sem causa.
É por isso que vemos Jean Wyllys, do PSol – que
oficialmente ainda defende o regime venezuelano –, tecendo críticas a Maduro,
mas sem conseguir chegar ao verdadeiro culpado: o socialismo, que está no nome
de seu partido. A esquerda fez a mesma coisa com o terrível legado do PT:
aceitou condenar Dilma para poupar o próprio esquerdismo. Mas isso é
desonestidade, e pode até enganar alguns iludidos, mas não pode passar
despercebido por gente séria.
Crianças focam apenas em pessoas, mas adultos falam de
ideias. Sabem que o destino de nações não é definido apenas pelo voluntarismo
de Fulano ou Sicrano, e sim pelas ideias vigentes, que apontam para qual
direção as medidas serão tomadas. Em outras palavras: as pessoas maduras não
falam só de Maduro, mas do socialismo; não focam apenas nos fins, mas nos
meios.
Enquanto o sujeito infantil ignora os métodos para salvar
sua crença, aquele mais sábio vai justamente questionar os métodos, para checar
se funcionam ou não. E quem agir assim chegará invariavelmente à conclusão de
que o DNA do grande culpado está em todas as cenas do crime, tanto na Venezuela
como nos demais exemplos. O culpado é o socialismo.
E o que se entende por socialismo aqui? Ora, é simples:
basta ver quais são os meios que os socialistas pregavam e ainda
pregam. Comecemos pelo discurso segregacionista, que joga uns contra outros,
pobres contra ricos, mulheres contra homens, negros contra brancos. Todo
socialista parte dessa premissa: oprimidos e opressores, num jogo de soma zero.
Logo, é preciso tirar de uns para dar a outros. Isso seria “justiça social”.
Como mecanismo para tanto, vale expandir os gastos
públicos como se austeridade fosse um palavrão repetido apenas por
“neoliberal”, impor controle de preços, nacionalizar e estatizar empresas,
abolir o império das leis em troca do arbítrio do governante, rasgar a
Constituição, usar o Banco Central como instrumento para imprimir moeda e
crédito e fomentar o consumo das massas, adotar práticas protecionistas contra
o capital estrangeiro, punir os empresários independentes lucrativos e
subsidiar outros que se tornam aliados políticos, aparelhar o Estado e
controlar a “imprensa golpista”. Essa é a pauta socialista, seja de Chávez e
Maduro, seja dos soviéticos, seja dos petistas e do PSol.
E, quando tais meios são adotados, o único
resultado possível é esse: miséria, escassez generalizada, filas e
racionamento, opressão e terror, ditadura. Não existe socialismo democrático
justamente por isso: os métodos socialistas produzem inflação e depressão, a
população fica revoltada e o governo, que passou a acumular muito poder, usa
sua força para impedir a troca de comando que seria inevitável dentro da
democracia.
O desarmamento da população também é outra bandeira
socialista exatamente para facilitar essa tomada plena de poder, sem muita
resistência, ou ao menos sem resistência armada. Defender as políticas de
extrema-esquerda, portanto, é o mesmo que defender o destino venezuelano, por
mais que esquerdistas finjam agora não existir ligação alguma entre uma coisa e
outra.
Alain Besançon resumiu com perfeição, em A
infelicidade do século: “O comunismo é mais perverso que o nazismo porque ele
não pede ao homem que atue conscientemente como um criminoso, mas, ao
contrário, se serve do espírito de justiça e de bondade que se estendeu por
toda a terra para difundir em toda a terra o mal. Cada experiência comunista é
recomeçada na inocência”.
*Publicado no Portal Gazeta do Povo em 09/08/2017
**Rodrigo Constantino, economista e jornalista, é
presidente do Conselho do Instituto Liberal.