O apelo patético de Marco Aurélio
Luiz Maklouf Carvalho
Nunca se viu, na história do Supremo Tribunal Federal, um apelo tão patético ao espírito de corpo como o
feito pelo ministro Marco Aurélio Mello na tensa sessão plenária da última quarta-feira, 7 - a que
manteve o resiliente Renan Calheiros (PMDB-AL) na presidência do Senado.
Depois de citar, um a um, os nomes dos oito ministros que iriam votar a seguir,
enumeração inédita, Marco Aurélio os instou, dramaticamente, a que o acompanhassem
na liminar contra o inimigo jurado daquele momento. "Que cada qual, senhor
de uma biografia, senhor da busca pelo fortalecimento do Supremo como poder
maior, cumpra o dever de prestar contas à história", disse, no final da
primeira parte da sessão.
"Foi forte", comentou o advogado Daniel
Sarmento durante o intervalo. Ele foi o primeiro a ser chamado à tribuna, como
representante do partido Rede, para defender a liminar em que Marco Aurélio
destituía Calheiros do posto senatorial. O outro advogado chamado, Alberto
Cascais, defendeu o senador alagoano e a mesa do Senado, que, em dribles
sucessivos, se recusaram a assinar a intimação da liminar do ministro,
classificada de "surpresa extrema". Cascais
cascateou. "Jamais o Senado teve a intenção de desafiar esta Corte.
Jamais!". Pediu a cassação integral da liminar marcoaureliana, e pôs na
roda o segredo de polichinelo que já circulava desde a véspera nos bastidores:
a alternativa de afastar Calheiros apenas da linha sucessória da Presidência da
República, de resto pacífica, já que foi declarado réu, deixando-o em paz na
presidência do Senado pelas poucas últimas semanas que restam.
Foi a vez do procurador-geral da República, Rodrigo
Janot. Seu rosto avermelhado faz um contraste curioso com os cabelos brancos
que cobrem metade da testa. Craque nos superlativos - como José Dias, o
agregado de "Dom Casmurro" - Janot usa "relevantíssima",
"nobilíssima", e que tais, com naturalíssima abundância. Estava
indignado, como Marco Aurélio, com as fintas do senador no oficial de justiça -
"dribles sucessivos, registrados e certificados", carimbou. Era o
segundo registro à foto de Dida Sampaio, deste Estado, que registrou a
presença de Calheiros na residência oficial em que mandou dizer que não estava.
Janot não citou o nome do fotógrafo, mas Marco Aurélio o fez. A foto pode virar
uma prova, se for em frente o pedido de criminalização da recusa a receber a
intimação, feito por Marco Aurélio a Janot.
Ao final de sua peroração, criticando o desprezo pela
liminar, o procurador-geral ofereceu uma variação da frase já famosa de sua
sabatina no Senado Federal de Renan Calheiros: "Pau que dá em Chico, tem que
dar em Francisco".
O Francisco do momento era Calheiros - e Marco Aurélio
pegou o bastão. "O Senado é o senador Renan Calheiros", ironizou.
"Quanto poder!". Olhando para a presidente, ministra
Cármen Lúcia, tripudiou: "Que se faça justiça ao senador Renan
Calheiros. Ele não me chamou de juizeco". O alvo do diminutivo foi,
recentemente, o juiz de primeira instância Vallisney de Souza Oliveira, por ter
autorizado a prisão de agentes da polícia do Senado e a apreensão de documentos
e equipamentos. Cármen Lúcia subiu nas tamancas, de pronto, o que levou
Calheiros a se desculpar. Não houve a mesma determinação ao desrespeitoso
comentário do senador, na véspera, sobre o tremor que sacode a alma de Marco
Aurélio quando ouve falar em supersalários. O ministro não fez referência à
ofensa - até aqui não retirada pelo presidente do Senado.
Depois do sarcasmo - ou da picardia, como prefere - Marco
Aurélio passou ao voto propriamente dito. Mais do que defender tecnicamente sua
liminar - onde foi perfunctório, data máxima vênia - esmerou-se nos adjetivos
contra a recusa em recebê-la: "triste exemplo", atitude
"inconcebível, intolerável, grotesca" contra o Supremo Tribunal
Federal. Classificou a solução intermediária de Cascais - deixar Calheiros na
presidência do Senado - como "famoso jeitinho brasileiro" e
"meia sola constitucional". Arrematou dizendo que não podia
prevalecer uma "visão acomodadora", e clamando, dramaticamente, pela
adesão solidária dos colegas de toga, alguns deles por muitos anos.
Na volta do intervalo-merenda - que a ministra
Cármen Lúcia está conseguindo disciplinar em meia hora - a sessão ofereceu
uma surpresa: o ministro com mais tempo na casa, o respeitado decano Celso de
Mello, quase sempre o penúltimo a votar, foi o primeiro a fazê-lo. E, mais
importante, o primeiro a dissentir do apelo corporativo de Marco Aurélio. Celso
de Mello abriu a divergência, como se diz por ali, e, a par de muitos elogios
ao segundo mais velho da Corte, não avalizou a liminar que mandava destituir
Renan da presidência do Senado. "Fui o primeiro apenas para desfazer um
equívoco no voto anterior", explicou o decano, apoiado na bengala que o
ajuda a administrar os problemas na coluna, na paciente coletiva que concedeu
depois da sessão, recheada de expressões em latim. Desfeito o equívoco, e
expressa a divergência, fora da ordem cotidiana da tomada de voto, restou a
constatação de que o decano ignorou por completo o apelo emocional, colocando a
questão técnica da legalidade da liminar acima do espírito de corpo que Marco
Aurélio pretendia fazer prevalecer.
O mais novo do Tribunal, ministro Edson Fachin, é quase
sempre o primeiro a votar. Foi o segundo - e somou com Marco Aurélio. Teori
Zavascki, a seguir, acompanhou a divergência do decano. Foi dele a farpa afiada
"às críticas pejorativas de caráter pessoal, em que juízes tecem
comentários sobre decisões de outros juízes" - entendida como uma
referência ao Grande Ausente da sessão, no caso o ministro Gilmar Mendes, que
no dia anterior, em viagem pela Europa, a trabalho, desancou a liminar de Marco
Aurélio, no mérito, ameaçando até com impeachment, por "crime de
responsabilidade", como jamais se viu. (O outro ausente, embora presente,
foi o ministro Luís Roberto Barroso. Como estava impedido de votar - o advogado
da Rede é de seu antigo escritório - entrou mudo e saiu calado).
Dias Toffoli, com uma urgente reunião em andamento,
também furou a ordem de votação. Somou com a divergência de Mello, e foi o
único a não fazer qualquer elogio a Marco Aurélio. Talvez pela pressa em
retirar-se, talvez pela encrenca de dias atrás, em que o responsabilizou por
atraso no repasse de um processo em que pedira vista, - justo o que discute se
réu em ação penal no STF, como o presidente do Senado, pode estar na linha
sucessória da presidência da República. Marco Aurélio não aceitou a crítica,
dizendo que o processo estava virtualmente disponível, era só acessar.
A próxima a votar, ministra Rosa Weber, ficou com Marco
Aurélio. Empate de 3 a 3 - sepultado pelos próximos três votos que seguiram o
decano: Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia. Os dois primeiros,
fartos em encômios ao colega na berlinda, trituraram a sustentação técnica da
liminar. A presidente Cármen Lúcia, fechou o placar, a seu estilo. Depois
dos elogios a Marco Aurélio, falou em "prudência, convívio mais fácil,
busca do consenso em benefício do Brasil". Citou, com senso de
oportunidade, o recém-falecido poeta Ferreira Gullar: "Uma parte de mim é
permanente/outra parte se sabe de repente". Marco Aurélio saiu carregado
de solidariedade retórica. Do que realmente queria - a confirmação de seu poder,
em momento de arroubo emocional - não levou nem o cheiro. A sessão mostrou que
a Corte ferve por dentro. Um dia explode, que deus nos livre.
*Publicado no Portal do Jornal Estadão em 08/12/2016