‘Nós criamos uma
delinquência generalizada no País’
“O que me impressiona é que onde você destampa tem alguma
coisa errada”, disse ao Estado o ministro Luís Roberto
Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF). A pergunta era sobre a Operação
Lava Jato, que tramita na Casa sob a relatoria do ministro Teori Zavascki.
Barroso evitou qualquer comentário específico, mas manifestou seu assombro com o
volume de denúncias que tem vindo à tona.
Em seu quarto ano como ministro – foi indicado pela
presidente cassada Dilma Rousseff e aprovado pelo Senado – o ex-advogado e
procurador do Estado do Rio de Janeiro, de 58 anos, disse esperar que em breve
o País passe por uma campanha incisiva de desjudicialização. “Ninguém pode
achar que a vida de um país possa tramitar nos tribunais”, afirmou.
O que mais o impressiona na
Operação Lava Jato?
Nós termos construído um país em que um Direito Penal
absolutamente ineficiente não funcionou, durante anos, como mínima prevenção
geral para evitar um amplo espectro de criminalidade.
O acúmulo das denúncias,
portanto.
Sim. Porque não é um episódio, nem dois, nem três. Onde
você destampa tem alguma coisa errada. Nós criamos uma delinquência
generalizada no País. E com um contágio que ultrapassa tudo o que seria
imaginável.
Como é que se sai disso?
Não é fácil. Por mais que o Judiciário consiga fazer bem
o seu papel, não se governa um país com o Judiciário. É a política que precisa
ser reformada.
E aí está o problema...
A grande contradição é que nós dependemos de mudanças que
têm que vir do Congresso. E espontaneamente elas não virão, porque,
compreensivelmente, as pessoas não mudam o sistema que as elegeu. A sociedade
brasileira, mobilizada, é que deve cobrar as mudanças, começando pelo sistema
de justiça, que é o fim do mundo.
O que traz as ações penais
contra os políticos para o Supremo e o Superior Tribunal de Justiça é a
prerrogativa especial de foro por função, estabelecida pela Constituição. Esse
é um dos problemas?
A prerrogativa de foro deveria ser drasticamente
reduzida, para abranger apenas os chefes de poder, e, talvez, os ministros do
Supremo.
Como ficariam os demais, como
deputados e senadores?
Eu defendo a criação de duas varas federais, em Brasília,
uma para matéria penal, outra para ações de improbidade administrativa. Esse
juízes seriam escolhidos pelo Supremo, com mandato de quatro anos, ao final dos
quais seriam automaticamente promovidos para o seu Tribunal, para não dever
favor a ninguém. E teriam tantos juízes auxiliares quanto necessário.
Uma das críticas a essa
proposta é que um juiz como esse seria poderoso demais...
Qualquer juiz criminal que possa prender alguém é muito
poderoso. E depois, na minha proposta, da decisão dele caberia recurso, ou para
o Supremo ou para o STJ. Haveria um controle, mas sairia do Supremo esse papel
de fazer a instrução do processo, funcionando como primeiro grau.
E por que sediá-los em
Brasília?
Porque o parlamentar, sobretudo no seu Estado, no seu
município, pode ou ser perseguido ou ser protegido. Eu gosto de brincar:
Brasília é muito longe do Brasil, então não tem risco desse tipo de influência
local.
Entre essas ações penais que
tramitam no Supremo está a Operação Lava Jato...
Eu não vou falar da Lava Jato, mas da tramitação dos
processos penais aqui no Supremo, de forma geral. É evidente que o Supremo
demora mais. No primeiro grau, quando o Ministério Público oferece uma
denúncia, o juiz diz “Recebo a denúncia, cite-se o réu”. Aqui, ao receber uma
denúncia, tem que abrir uma fase para a defesa prévia do acusado. Depois, o
relator tem que preparar um voto e trazer para plenário, onde cinco ou dez
outras pessoas também vão se manifestar sobre aquela questão. Aqui o
recebimento de uma denúncia leva, na média, quase dois anos. O sistema é que é
ruim.
Melhorou alguma coisa a
mudança que manda a maioria dos casos para as turmas (cinco ministros), e não
necessariamente para o plenário?
Foi uma mudança de grande importância, e eu mesmo é que
sugeri. A turma tem uma dinâmica muito mais rápida, por muitas razões. A
ausência da TV Justiça é só uma delas.
A Operação Lava Jato criou um
clamor público. Ele deve interferir nas decisões do Supremo?
Numa sociedade democrática, o clamor público sempre deve
ser levado em conta. Quem exerce cargo público tem que ter olhos para o mundo e
saber o que a sociedade pensa. Mas, evidentemente, não se decide um processo
penal em razão do clamor público.
Clamor que também existe, faz
tempo, com o sistema de Justiça que o sr. mesmo chama de “fim do mundo”.
A litigiosidade aumentou, as pessoas têm ido procurar
mais os seus direitos. E o Judiciário ainda não está aparelhado para atender a
tempo e a hora essa volumosa demanda.
Qual é a solução?
Nós temos que nos aparelhar, melhorar os serviços. Acho
que logo ali na frente o País vai ter que passar por uma campanha incisiva de
desjudicialização da vida.
Como assim?
Ninguém pode achar que a vida de um país possa tramitar
nos tribunais. É esquisito eu dizer isso agora que eu virei juiz, mas nós somos
uma instância patológica da vida. Uma matéria chega ao Judiciário quando tem
briga. E ninguém deve achar que briga é a forma normal de se solucionar os
problemas da vida. Tem que ter mecanismos administrativos de solução amigável.
Entrevista publicada no Portal Estadão em 12/10/2016