O papel de Lula*
Caberá à Justiça decidir se Lula da Silva é a “viva alma
mais honesta do Brasil”, como o ex-presidente se jactou algumas vezes, ou se o
chefão petista não só “tinha ciência do estratagema criminoso” na Petrobrás,
como “dele se beneficiou”, como acusaram quatro procuradores da República que
compõem a equipe da Operação Lava Jato, em um documento tornado público na
sexta-feira passada.
Obviamente, uma das duas versões é completamente falsa, e
será necessário aguardar a conclusão das investigações e do eventual julgamento
para que o distinto público possa decidir em quem deve acreditar. No entanto,
impressiona, nas 70 páginas do parecer do Ministério Público, a quantidade de
informações que, se acompanhadas de prova, podem comprometer Lula, colocando-o
na condição de beneficiário do assalto ao Estado realizado em seu governo e no
de sua sucessora, Dilma Rousseff. A julgar pelo que lá vai, dificilmente Lula
poderá alegar que nada sabia, como fez, candidamente, quando estourou o
escândalo do mensalão, espécie de avant-première do monumental
esquema que dilapidou a Petrobrás e outras estatais.
A manifestação do Ministério Público Federal se deu em
razão de uma consulta da 13.ª Vara Federal de Curitiba, depois que a defesa de
Lula alegou que aquele tribunal, onde atua o juiz Sérgio Moro, não teria
competência para avaliar as acusações relacionadas ao caso do sítio em Atibaia
e do apartamento no Guarujá. Como as propriedades estão em São Paulo, os
advogados do ex-presidente entendem que o processo deveria ser julgado por um
tribunal paulista.
Para o Ministério Público, não se pode falar de exceção de
incompetência em relação a Moro a esta altura porque ainda não há nenhuma ação
penal contra Lula, apenas investigações policiais. Mesmo assim, os procuradores
entenderam que o caso deva ser encaminhado ao juiz paranaense, responsável pela
Lava Jato, porque, em sua opinião, as acusações contra Lula dizem respeito a
desdobramentos do petrolão. Trata-se, diz o Ministério Público, de “uma só
organização, com o mesmo modus operandi, integrada pelos mesmos agentes,
em contextos parcialmente diferentes, mas sempre com o mesmo fim:
enriquecimento ilícito dos seus integrantes e manutenção do poder político”.
Sendo assim, continua o parecer, “a investigação e o processo de cada infração
devem correr perante os mesmos órgãos, que possuem a visão de todo o esquema criminoso”.
Segundo os procuradores, as provas recolhidas até aqui no
âmbito da Lava Jato permitem entender as formas pelas quais os operadores do
propinoduto da Petrobrás repassaram o dinheiro desviado para seus
beneficiários. Entre esses mecanismos estão “a compra e reforma de imóveis
pelas empreiteiras ou empresas intermediárias da lavagem de ativos, em
benefício dos destinatários finais da propina” – justamente a suspeita que
recai sobre Lula e os misteriosos imóveis sem dono em Atibaia e no Guarujá.
Outra forma de esquentar o dinheiro desviado da
Petrobrás, dizem os procuradores, foi disfarçá-lo de doações eleitorais. Nesse
caso, o parecer lembra que, “ainda em 2005, Lula admitiu ter conhecimento sobre
a prática de caixa dois no financiamento de campanhas políticas”, ou seja,
“Lula sabia que empresas realizavam doações eleitorais ‘por fora’ e que havia
um ávido loteamento de cargos públicos”.
Ademais, os procuradores lembram que “a estrutura
criminosa perdurou por, pelo menos, uma década” e que Lula ocupou nesse período
“posição central em relação a entidades e indivíduos que diretamente se
beneficiaram do esquema”. Dizem também que “não é crível que ele desconhecesse
a existência dos ilícitos” e que muito provavelmente “foi beneficiado direta e
indiretamente por repasses financeiros de empreiteiras envolvidas na Operação
Lava Jato”.
Por ora, a defesa de Lula preferiu recorrer a uma
escalafobética denúncia à Comissão de Direitos Humanos da ONU e apelar à
ironia, ao dizer que o caso do sítio em Atibaia não pode ser julgado pela
Justiça paranaense porque “Atibaia não é Atobá, uma cidade do Paraná”. A julgar
pela força da acusação do Ministério Público, porém, os mais de 20 advogados de
Lula, mais cedo ou mais tarde, terão de ter argumentos um pouco mais sólidos
para defendê-lo.
*Publicado no estadão.com em 07/08/2016