‘O triste fim de
uma utopia’*
Zuenir Ventura
Com certeza esse não era o desfecho esperado por Lula quando disse para a então
candidata: “Dilma, sua eleição será a realização final do meu governo”. Na
verdade, é o final infeliz de uma história que começou tão bem. Ao ser fundado
em fevereiro de 1980, numa assembleia no Colégio Sion, em São Paulo, o Partido
dos Trabalhadores foi a luz no fim do túnel no momento em que o Brasil vivia os
estertores da ditadura militar. Toda a energia social reprimida por mais de uma
década passou a se manifestar em movimentos de afirmação popular nos anos de
1978/79. Foi quando as históricas greves do ABC paulista, que chegaram a
realizar assembleias com mais de 100 mil operários, revelaram um novo
sindicalismo, liderado por um fenômeno que estava surgindo sob a forma de um
retirante nordestino, torneiro mecânico barbudo de apelido Lula.
“A classe operária
vai ao paraíso” deixou de ser o título de um filme famoso de Elio Petri para
ser visto como uma espécie de vaticínio, reforçado pela coincidência de que o
operário do filme também tinha perdido um dedo na máquina da fábrica em que
trabalhava. Os desiludidos com as organizações tradicionais que não conseguiam
tirar os militares do poder embarcaram com esperança na promissora aventura.
Entre os 128 que assinaram a ata inaugural estavam os socialistas Antonio
Candido e Sérgio Buarque, o comunista Apolônio de Carvalho, os trotskistas
Mario Pedrosa e Lélia Abramo, e os cristãos Paulo Freire e Plínio de Arruda
Sampaio.
Em 1976, o Grupo Casa Grande, que promovia ousados
debates ainda na vigência da censura, até sob ameaça de bombas, trouxe aquela
novidade paulista ao Rio pela primeira vez para uma palestra. Era uma plateia
de mais de mil estudantes e intelectuais, que ouviram embevecidos Lula criticar
estudantes e intelectuais. Franco, errando na concordância, mas carismático,
foi uma revelação.
No entanto, o resultado da primeira experiência eleitoral
de Lula, em 1982, não correspondeu ao prestígio que adquirira como líder
sindical. Ficou em quarto lugar na disputa pelo governo de SP. Só em 1986
recuperou-se, ao ser eleito o deputado mais votado do país. Mas em seguida
vieram os revezes. Em 1989, perdeu as eleições presidenciais para Fernando
Collor. Em 1994, foi derrotado no primeiro turno por FH, e o mesmo aconteceu em
1998. Só na quarta tentativa, em 2002, “a esperança venceu o medo”, e ele
conseguiu chegar à Presidência com mais de 50 milhões de votos.
Voltei a me encontrar com Lula em 1993, quando cobri para
o “JB” a sua primeira Caravana da Cidadania, que percorreu 54 cidades do
Nordeste. Foi uma incrível experiência jornalística acompanhá-lo durante 24
dias por bolsões de miséria que não dispunham de progresso e cidadania, às
vezes nem de água e comida. Assisti a cenas como a de sua entrada triunfal em
Nova Canudos, acompanhada de uma chuva torrencial após três meses de seca
inclemente.
Escrevi então: “Velhos, jovens e crianças foram para a praça
celebrar Lula e a chuva. Cantaram e dançaram pela dádiva divina. Houve até uma
eucarística distribuição de pães aos sem-terra. No reino mítico de Conselheiro,
Padim Ciço, Lampião e Glauber Rocha não existe acaso. Só milagre”. (Com razão,
o dono do jornal me chamou de volta por eu “estar muito lulista”)
Não foi só por esse mergulho no Brasil profundo que
admirei Lula, mas também porque o seu “partido da ética” prometia não roubar
nem deixar roubar. E, durante um tempo, foi assim. Era um desafio encontrar em
algum escândalo um membro do PT. Hoje, é não encontrar. Acho que a perda da
inocência ocorreu em 2005, com o mensalão. Não por acaso, foi o ano em que
Hélio Bicudo deixou o partido, ele mesmo, fundador e, após 36 anos, coautor do
pedido de impeachment de Dilma. Antes ou depois dele, outros colegas
abandonaram ou foram abandonados, todos desiludidos: Heloísa Helena, Marina
Silva, Cristovam Buarque, Plínio de Arruda Sampaio, para só citar alguns.
A crítica mais corajosa ao PT, porém, partiu de quem não
é dissidente e permanece nele até hoje. Em 2010, ao avaliar os 30 anos da
sigla, o então chefe de gabinete do presidente Lula, Gilberto Carvalho,
ressaltou os inegáveis avanços sociais, para em seguida lamentar o
“assemelhamento” nos defeitos. “Até o vício da corrupção entrou em nosso
partido”. Pela mesma razão, Tarso Genro propôs “refundá-lo”. Mas preferiram
afundá-lo.
Em 2014, estourou o petrolão, um propinoduto cuja
dimensão fez do mensalão um tímido ensaio. Ao ver agora a extensão da encrenca
de Lula no STF e na Lava-Jato, com ameaça de prisão, sinto a tristeza dos que
se lembram do tempo em que a única acusação contra ele era de atentado à
gramática, por falar “menas” e cometer anacolutos nos discursos.
O PT e Lula podem não acabar. Mas a utopia que eles
encarnaram, essa acabou. Melancolicamente.
*Publicado em Globo.com em 12/05/2016