O bom senso interrompido*
O Supremo Tribunal Federal (STF) é a
instância máxima do Judiciário, mas, malgrado seu nome, não é o poder supremo
do País, acima dos demais. Por essa razão – e não é preciso ser
constitucionalista para saber disso –, o Supremo não pode discutir decisões
soberanas do Legislativo, como o impeachment de um presidente, se estas forem
adotadas segundo o mandamento constitucional. Mas não é bem isso o que pensam
alguns dos ministros do STF.
Mesmo depois que a Corte concluiu, na sessão extraordinária de quinta-feira, que o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff caminha totalmente dentro da legalidade, descartando-se de vez a tese petista do “golpe”, o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, informou ao País que, sim, Dilma poderá recorrer àquele tribunal caso queira refutar a decisão do Congresso de destituí-la.
“Não fechamos a porta para uma
eventual contestação no que diz respeito à tipificação dos atos imputados à
senhora presidente no momento adequado”, afirmou Lewandowski, ao final de mais
de sete horas de sessão, durante as quais os ministros do STF decidiram manter
o rito de votação do impeachment estabelecido pela Câmara e também descartaram
ter havido cerceamento da defesa, como alegavam os defensores de Dilma.
Ou seja, no mesmo dia em que o
Supremo atestou a lisura e a constitucionalidade de todos os procedimentos
relativos ao processo de impeachment até aqui, recusando-se a dar guarida às
chicanas do advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, e de parlamentares
governistas, o presidente escancarou as portas da Corte para quem quiser usar
as faculdades do Judiciário para questionar, tumultuando o País, a decisão do
Congresso.
Tal admissão torna-se ainda mais
patética quando se observa que o julgamento de Dilma no Senado será presidido
pelo próprio Lewandowski, conforme manda o rito constitucional. Ou seja: o
ministro considera que mesmo uma decisão do Congresso da qual ele pessoalmente
tomará parte pode vir a ser alterada no Supremo. Trata-se de evidente
despautério, que reforça, por meio de um falso formalismo, uma tradição de
insegurança jurídica que tanto mal causa ao País.
Até aqui, o Supremo vinha se deixando
enredar pelo ativismo de alguns de seus ministros, cujas decisões mais
confundiam que esclareciam. Anteontem, a Corte resolveu que, nesta hora tão
dramática, era fundamental realizar uma sessão plenária para dar caráter
institucional e terminativo à sua decisão. O resultado, até a infeliz
intervenção do presidente Lewandowski, incentivado pela dissidência do sempre
discordante Marco Aurélio Mello, foi o bom senso.
Em primeiro lugar, o Supremo entendeu
que não lhe cabe decidir sobre o regimento de outros Poderes. Depois, demonstrou
que não procedia a reclamação de cerceamento do direito de defesa de Dilma,
porque o processo de impeachment ainda está na fase de admissibilidade.
É claro que não se chegou a esses
resultados sem percalços. Dois dos ministros – o presidente do Supremo, Ricardo
Lewandowski, e Marco Aurélio Mello – tudo fizeram para embaraçar a Corte. Marco
Aurélio, por exemplo, sustentou que houve, sim, cerceamento do direito de
defesa de Dilma. Foi também de sua lavra o argumento de que a ordem de votação
do impeachment poderia desvirtuar a neutralidade do julgamento. Em resposta,
teve de ouvir do ministro Gilmar Mendes o óbvio: que não se pode esperar
neutralidade dos deputados, partidários por definição, e que cabia ao Supremo
apenas observar se estava sendo respeitado o devido processo legal – e, sobre
isso, não há até aqui nenhuma dúvida.
Coube a Lewandowski, porém, a mais
preocupante intervenção. Ao mandar constar da ata a possibilidade de “reexame”
da tipificação dos atos imputados a Dilma, o presidente do Supremo abriu
caminho para que eventualmente se tumultue o processo de cassação, permitindo
que se questione decisão soberana do Congresso.
A judicialização da crise política é
um estímulo para que Dilma e os petistas coloquem em execução o único recurso
que lhes resta numa disputa perdida: a procrastinação ad infinitum do
processo. Essa ignomínia submeteria a Nação a uma angústia e a sofrimentos que
acabariam por solapar os fundamentos sobre os quais repousa uma democracia.
*Publicado no Portal Estadão.com em
16/04/2016