Lula enxerga a elite branca no reflexo do espelho
Josias de Souza*
A política convive com uma regra antiga: personalize o seu adversário. O
mal, quando tratado como mera abstração, é impalpável. Mas dê-lhe uma cara com
um par de chifres e você terá um inimigo nítido. Durante muitos anos, Lula foi
vítima dessa técnica. O rótulo de ‘esquerdista radical’ custou-lhe três
eleições presidenciais. Para prevalecer em 2002, teve aparar a barba, vestir
Armani e beijar a cruz. Renegou numa carta aos brasileiros tudo o que sempre
defendera.
Desde então, Lula passou de alvo do feitiço a feiticeiro. Hoje, utiliza
o mesmo método contra seus rivais. Pós-graduado nas artes da mistificação, ele
estava atrás de um nome para o fantasma da mudança, que ameaça a reeleição de
Dilma Rousseff. Dias atrás, encontrou. Chamou-o de “elites”. Pronto! Qualquer
criança de cinco anos sabe que o problema do Brasil são as elites. O governo é
maravilhoso, o povo é extraordinário. Corruptas e gananciosas, as elites é que
não valem nada. Urge derrotá-las.
O PT realiza neste sábado (21), em Brasília, a convenção que aclamará
Dilma como candidata ideal para assegurar aos brasileiros mais quatro anos de
felicidade. O ponto alto da cerimônia será um novo encontro de Lula com o
microfone. Desse contato resultará o terceiro pronunciamento do grande líder
desde que a “elite branca” do Itaquerão mandou Dilma “tomar no cu”. Será mais
uma oportunidade para esconjurar o inimigo.
O demônio exime o exorcista do exame de todo o mal. A começar pelo mais
doloroso: o auto-exame. A coisa vinha funcionando bem. Em 2006 e 2010, bastou
transferir para o neoliberalismo da elite tucana a culpa pelas ações, omissões
e crimes do poder petista. Enquando o país se divertia com as reações
atabalhoadas do PSDB, o marqueteiro João Santana cuidava da propaganda
redentora. As pesquisas informam que o desafio de 2014 talvez seja maior.
O governo de Dilma nunca foi tão mal
avaliado. Segundo o último Ibope, divulgado nesta
quinta-feira (19), a taxa de aprovação do governo da madame caiu de 36% para
31% entre março e junho. Na outra ponta, subiu de 27% para 33% o percentual dos
que consideram a administração federal ruim ou péssimo. Em novembro de 2013, os
brasileiros que avaliavam a atual gestão como ótima ou boa somavam 43%. Quer
dizer: a popularidade do governo despencou 12 pontos em sete meses.
Tomada pelo potencial eleitoral, Dilma ainda é uma candidata de 39%. Não
é preciso ser um gênio para intuir que os dois índices —avaliação do governo e
intenção de votos— tendem a cruzar em algum momento do processo eleitoral.
Mergulhando-se no mar de números colecionados pelo Ibope, percebe-se que o mago
João Santana terá de molhar a camisa para impedir que o percentual de votos
caia, encontrando-se com a popularidade do governo no ponto mais baixo da
curva.
O Ibope recolheu a opinião dos eleitores sobre o desempenho do governo
em oito áreas específicas. Em todas elas, sem exceção, a taxa de desaprovação é
maior que o índice de aprovação. Na Educação, 67% desaprovam a ação
governamental e 30% aprovam. Na Saúde, 78% desaprovam e apenas 19% aprovam. Na
segurança, a desaprovação é de 75% e a aprovação de 21%. No meio ambiente, 52%
de desaprovação, contra 37% de aprovação.
Na política de combate à fome e à pobreza, principal logomarca do
petismo, a desaprovação é de 53% e a aprovação de 41%. No combate ao
desemprego: 57% de desaprovaçao e 37% de aprovação. No essencial, que é a
economia, os índices tóxicos se repetem. O combate à inflação é reprovado por
71% dos entrevistados e aprovado por apenas 21%. Na política de juros, a
desaprovação é de 70% e a aprovação de 21%. Na área dos impostos, a
desaprovação vai à casa dos 77% e a aprovação é de escassos 15%.
O Ibope informa que o mau humor do brasileiro içou a taxa de rejeição a
Dilma Rousseff para as alturas. Hoje, declaram que não votariam nela “de jeito
nenhum” 43% dos eleitores. Verificou-se que é menor a rejeição aos antagonistas
Aécio Neves (32%) e Eduardo Campos (33%). Nesse contexto, o velho hábito de
Lula de apontar o dedo indicador para as “classes dominantes”, elegendo-as como
demônio para o qual transferir as culpas do PT, talvez já não seja a melhor
arma eleitoral. É possível que não sirva nem mesmo para desconversar.
Lula ainda não se deu conta —ou talvez já tenha notado e apenas finge
que não vê—, mas o fenômeno mais eloquente da atual quadra sucessória é o
surgimento de nichos de contestação à margem do PT e de toda a engrenagem
sócio-sindical que se move sob o comando do partido. As ruas voltaram para
casa. Mas o sentimento de mudança explodiu em junho de 2013 continua ardendo no
asfalto.
Tudo leva a crer que o ministro Gilberto Carvalho, o Gilbertinho, tem
razão quando diz que os nomes feios que a presidente evoca não brotam apenas
dos lábios da “elite branca”. Se as pesquisas carregam alguma novidade é a
seguinte: o Brasil está virando uma espécie de Itaquerão hipertrofiado. A tese
de que o problema são as elites já fez longa carreira no país do PT. Mas pode
estar com os dias contados.
Só os petistas ainda não notaram que a elite agora são eles. Os 800 mil
industriais que, segundo o então presidente da Fiesp Mário Amato, fugiriam do
país se Lula fosse eleito em 1989, foram domesticados pelo “bolsa-empresário”,
pelas isenções tributárias e pelo prêmio à sonegação embutido no Refis eterno.
O empresariado reclama de Dilma porque já não se satisfaz com tudo. Exige algo
mais.
A integração do indivíduo num grupo é, quase sempre, um processo de aviltamento.
Por vezes, o sujeito tem que se violentar para entrar no todo. Mas Lula não
parece desconfortável com sua nova condição. Ele hoje dá palestras milionárias,
é protegido por seguranças, move-se em carro oficial e só voa de jatinho. Deve
dar boas gargalhadas ao verificar, na hora de escovar os dentes e pentear os
cabelos toda manhã, que a elite branca agora mora no espelho do banheiro da
cobertura de São Bernardo.
*Jornalista