Leo
Iolovitch é autor do livro 'Na nuvem', onde derrama toda sua poesia e
sensibilidade em textos maravilhosos como o que reproduzo abaixo. Nele, o Leo
fala de um bar na Cidade Baixa que freqüentei nos anos 80, o Big Som. Refúgio
de artistas, o Marco Antonio, dono do bar e cantor, recebia, normalmente na
madrugada, os grandes nomes da música brasileira e internacional que se
apresentavam em Porto Alegre. Elis Regina, Baden Powell, Toquinho, Vinicius,
Emilio Santiago e tantos outros, passaram por lá e deram a tradicional ‘canja’,
para a alegria dos presentes.
No
texto do Leo Iolovitch, uma história fantástica e que retrata muito bem o que eram as noites no Big
Som.
Aconteceu
na Cidade Baixa
Leo
Iolovitch
O
tempo passa, os artistas mudam e muitos esquecem, mas Ray Charles apresentou-se
em Porto Alegre. Foi em 1995 no contexto de um festival patrocinado pelo
cigarro Free. Essa introdução é necessária, pois o que aconteceu é
rigorosamente verdadeiro.
Era
madrugada, dois amigos meus já estavam encerrando a noitada e, antes de ir para
casa, resolveram passar num barzinho que existia na rua Joaquim Nabuco próximo
da José do Patrocínio. Desceram do carro e à medida que se aproximaram ouviram
música, mas pensaram que era reprodução de fita ou disco.
Entraram
no bar e, para espanto total, viram sentado ao piano tocando e cantando,
ninguém menos do que Ray Charles.
A
cena era inacreditável, não só pelo cantor, mas pelo local. Não era show, não
havia couvert artístico e já passava das duas horas da madrugada. O bar estava
quase vazio.
Foi
o garçom que explicou; disse que Ray Charles estava sem sono e queria tocar
piano, mas não havia no hotel, então pediu que o levassem a algum lugar onde
pudesse tocar e cantar.
Naquela
hora da noite não era fácil achar o que ele queria, e o pessoal do hotel
indicou aquele bar; antes telefonaram consultando e pouco depois ele chegou
acompanhado apenas do motorista e um assessor, sentou ao piano e começou a
tocar. Não quis comer e bebeu apenas água mineral.
Como
era tarde, o bar não estava cheio e a maioria dos presentes não entendia muito
bem o que estava acontecendo. Ficaram assistindo aquele show maravilhoso entre
a incredulidade e o encantamento.
Naquele
tempo não havia telefone celular e, portanto, ninguém conseguiu chamar os
amigos ou tirar fotos. Durante aquelas duas ou três horas tiveram o privilégio
e ouvir o gênio do blues cantando e tocando ao piano.
O
episódio leva a entender o verdadeiro espírito de artista, que ama aquilo que
faz. Na noite insone do cantor cego a alegria é cantar. E foi isso que fez, e
deste modo propiciou uma noite inesquecível para os poucos que puderam lhe
assistir.
Assim
Ray Charles cantou na Cidade Baixa e quase ninguém da nossa cidade ficou
sabendo. A vida é também desse jeito, devemos sempre estar preparados para algo
inesperado, como um show privado do maior cantor de soul do mundo na madrugada
de Porto Alegre.
Apesar
de quase inacreditável isso foi real e conheço a testemunha ocular e auditiva.
O
que não se pode ter certeza e talvez seja mesmo lenda, é a história de que um
dos freqüentadores do bar, que já tinha bebido demais, resolveu ir embora e,
como todo gambá inconveniente, saiu reclamando:
" Isso aqui já foi melhor, hoje trouxeram esse negrão
xarope aí, que não tocou nenhuma música nossa e só fica cantando em inglês
imitando o Ray Charles. Vou embora".