Quem tem medo de ser biografado?
Ou como o Lira Neto me deixou com comichão?
César Cabral*
Acho essa história de biografias autorizadas e não autorizadas uma das mais chatas matérias que
hora tomam conta da imprensa no Brasil. Prefiro outros assuntos, porém, às
vezes acabo me enxerindo onde não sou chamado porque tenho opinião formada
sobre o assunto. Não sei se isso interessa, mas pode servir de debate como
quase tudo hoje em dias de internete.
Uma biografia autorizada só é publicada depois que o biografado,
se vivo, ou seus descendentes, lerem toda a obra, e fizerem modificações. Essas
poderão seguir o caminho que eles bem entenderem; ou amenizar e até suprimir
acontecimentos, fatos, dados e sei lá mais o que, ou acrescentar o que mais
interessa e dourar a pílula. Além disso, os biógrafos não são contratados e bem
pagos para falar mal do biografado e nem tratar de assuntos
digamos...constrangedores.
As biografias não autorizadas podem ser mais verdadeiras.
Todavia é fundamental que o autor tenha provas e comprove o que escreveu;
acho-as mais confiáveis embora não tenha nenhum interesse em ler biografia de,
sobretudo, quem ainda está vivo e anda por aí podendo alterar tudo o que foi
escrito; basta desmentir o biógrafo.
Prefiro historiadores, pesquisadores; acadêmicos dedicados à
busca do fato histórico sem paixões e deduções sem provas. Essas biografias
são, entre outras obras, mais uma fonte para compreender a sociedade, suas
transformações no tempo, aumentando assim o nosso entendimento da história de
civilizações, de povos de organizações políticas, sociais e religiosas.
Não li o primeiro livro que Lira Neto escreveu sobre Getúlio
Vargas, nem o segundo e nem lerei o terceiro. Tenho melhores e mais confiáveis
informações a respeito da vida e da obra de um dos mais importantes presidentes
do Brasil. Para não citar muitos autores, apenas a obra de Boris Fausto já
seria suficiente. Porém sendo gaúcho e tendo vivido, ainda que muito jovem, os
últimos dias de Getúlio e acompanhado como testemunha o “quebra-quebra” que os
vândalos e aproveitadores daquela época promoveram na cidade; e depois o que se
seguiu daí pra frente na política brasileira, é que despertou-me atenção à
exagerada cobertura da imprensa sobre a tal biografia que escreveu o jornalista
e biografo Lira Neto.
Eu mesmo não sei se fiquei mais exigente ou mais chato com o
passar dos anos. Há quem diga que estou é mais pra chato; outros, dizem que
estou ranzinza. Meu médico acupunturista, que trata de tudo sem remédios, mas apenas
com agulhas, me aconselha a “pegar mais leve” e apreciar com moderação meus
vinhos chilenos e meus escoceses adolescentes; mas já que não entendo como alguém
pode “apreciar” alguma coisa com moderação – não imagino como apreciar uma
paisagem ou um livro, com moderação! - sigo bebendo-os “a meu gosto”, como se
diz no Rio Grande.
Lira Neto, jornalista, resolveu escrever biografias e vem se
dando bem; boas edições e dinheiro, faço votos, desde Castelo Branco, Maiza,
Padre Cícero e agora Getulio.
Não li e nem pretendo ler nenhuma dessas biografias; os
personagens não me interessam, exceção a Getulio Vargas, mas sobre este tenho
coisa melhor, como já disse. Digo melhor mesmo sem ter lido o livro dele sobre Getulio,
porque o que li a respeito, no artigo publicado na Folha de São Paulo em
26/07/2012, reproduzindo trechos do livro, e pelas duas entrevistas que ele deu
falando do conteúdo do livro; na GloboNews, já me bastam.
Entre coisas estranhíssimas sobre o Rio Grande ele disse e
escreveu que, com esse trabalho de pesquisa sobre Getulio, descobriu que
existem muitas semelhanças entre os gaúchos e os cearenses. Seria bom se não
fossem tolices. Destacou como idênticos o “machismo”; que
é uma atitude de intolerância de certos homens para com as
mulheres, e não o que ele entende que seja. Ele interpreta o que diz ter
percebido em suas andanças por São Borja que cearenses e gaúchos são machistas;
segundo engano de quem acha que acertou no que não
viu, pois ele confunde machismo com a bravura histórica dos
gaúchos a lutar por quase 300 anos pelas terras que acreditavam já ter dono; há
isso se dá o nome de macheza, modos e atitude de macho. E disse que ambos, gaúchos
e cearenses, têm o mesmo espírito (se não foi essa a palavra, foi com o mesmo
sentido) “de vingança, de lavar a honra com sangue por qualquer motivo” (!?).
Pela lança de meu Sepé Tiaraju!!!! Valei-me Padim Ciço dele!!!
De onde ele tirou isso?
É o que dá escrever as orelhadas, como fez José de Alencar,
conterrâneo do Lira Neto, com O Gaúcho sem nunca ter estado no Rio Grande do Sul.
O livro é engraçadíssimo - mais do que atores da Globo falando como
nordestinos, como em Gabriela, ou, como gaúchos, em O Tempo e o Vento. Esses
escritores e biógrafos devem ter pensado que dá pra fazer como fizeram Edgar
Rice Burroughs, que escreveu Tarzan sem nunca ter estado na África, como
Willian Shakespeare, que escreveu Coriolano sem ter estado na Roma do século IV
a.C., ou Giuseppe Verde, que compôs Ainda sem nunca ter estado na Etiópia e no
Egito dos Faraós. Bom, mas aí já é outra coisa. E outra gente.
O Lira Neto de deixou buzina da vida. Então recolhi alguns
trechos das bobagens e do péssimo texto dele.Escreve ele em seu livro Getúlio,
que os jantares do Gegê, como o chamava meu pai, quando recebia personalidade
estrangeiras eram “comilanças pantagruélicas”, tentando aludir ao glutão
Pantagruel de Rabelais; possivelmente. Escreve ele que Getúlio “impressionava
os convidados pela enorme quantidade de proteína animal que conseguia ingerir
de UMA SÓ VEZ”; e que esse fato era “herança da infância e da juventude”.
Escreve ele que Getulio “foi INICIADO no ritual de abater e carnear o boi, para
depois sentar em volta do fogo com os companheiros de estância e observar o
lento crepitar das brasas e das chamas conferindo cor, aroma e sabor às fibras
sangrentas, sorvidas na forma de nacos fumegantes.”; botando na boca do
escritor Pedro Vergara, uma explicação ridícula sobre o churrasco. Escreve ele
que “Darcy, a primeira dama, reservava para o marido o osso em forma de forquilha
do peito da galinha. Os filhos já sabiam que
saborear a carne branca que envolvia o ossinho era um dos
prazeres prediletos do pai à mesa”. Não explicar numa biografia sobre essa,
digamos, preferência de Getulio “pelo ossinho em forma de forquilha” sem
definir o porquê desse habito, como se faz e pra que é que serve, torna-se
apenas um dado tolo, sem sentido, e irrelevante na narrativa. Escreve ele que
Getulio “todas as noites, para fazer o "quilo", gostava de sair CAMINHANDO
A PÉ (caminhar a pé deve ser uma proeza e tanto!) pela praia do Flamengo, com
seu característico paletó de linho branco e o par de sapatos bicolores, deixando
atrás de si um rastro de baforadas no ar”. “Fazer o quilo”, uma expressão digna
de Machado de Assis e do tempo dele, vá lá. Agora escrever uma CAMINHADA A PÉ e
ainda mais com UM PAR de sapatos, deve ser uma façanha; e das mais relevantes.
Escreve ele que “o hábito de fumar charutos - os de sua predileção eram os da
marca Soberano e Mil e Uma Noites - também provinha da mocidade. Nas
prateleiras da pequena biblioteca particular do jovem acadêmico de direito
Getúlio Vargas, as páginas dos livros de Nietzsche,
Darwin, Saint-Simon, Zola, Euclides da Cunha e Aluísio
Azevedo, então seus autores favoritos, recendiam a tabaco e,
também, a ERVA MATE MOIDA”. Escreve ele que “o chimarrão, como não poderia
deixar de ser, era outra das paixões do gauchíssimo Getúlio. Por vezes, despachava
com ministros e auxiliares de cuia na mão, a BOMBILHA de prata nos lábios.” Que
tal?
Tudo isso é ridículo, patético. Pobre biografia do Pai dos Pobres,
elogiada e glorificada pela imprensa e pela crítica literária brasilina; pobre
literatura. E isso é apenas um trechinho do primeiro livro de uma trilogia. Não
quero ler esse livro; parece escrito com o “português” do Paulo Coelho, de quem
li dois livros apenas, a duras penas, durante a última edição da minha “Semana
da Bondade” há três décadas.
Acho mesmo que o tempo me tornou chato e ranzinza pra certas
coisas. Porém, intolerante ainda não. Escrever sobre a vida privada e pública e
sobre o legado do mais famoso presidente da república não se faz com meia dúzia
de informações e nem mesmo com um milhão delas. É pouco pra contar a história
política de quem foi ditador por 15 anos e depois eleito presidente, democraticamente,
para um mandato que exerceu por 3 anos apenas se não tivesse resolvido
"sair da vida para entrar para a história" com um tiro no peito.
Também é preciso muito mais para contar a história de um homem que viveu 72
anos num país agrícola, subdesenvolvido, cobiçado por nazistas alemães,
fascistas italianos,
integralistas brasileiros e por norte americanos de boa vontade
por quase uma década. É natural que certos assuntos ocupem grandes espaços nas
mídias disponíveis e qualquer pessoa manifeste sua opinião sobre qualquer coisa.
Os tempos de hoje são assim. É o que está acontecendo, portanto temos total liberdade
de expressão. Mas a questão chave não é outra senão o entendimento do
significado de liberdade.
Há quem entenda que liberdade é “eu posso tudo”. A liberdade
é mais restritiva as atividades dos indivíduos do parece, pois suas regras são
rígidas, claras e definitivas.
Para Spinoza o filosofo, ser livre significa agir de acordo com
sua natureza. Schopenhauer entende que a ação humana não é livre. O iluminista
Rousseau entendia que o coletivo é mais importante do que o indivíduo. Portanto
o homem atinge apenas um certo grau de liberdade se abrir mão dela visando o
bem comum.Já Emmanuel Kant acreditava que o cidadão livre é o co-legislador.
Aquele que obedece as suas próprias leis.
No século XXI liberdade é um conceito ainda mais complexo,
sobretudo quando se trata de liberdade de expressão, como já me referi, com a
quantidade de meios disponíveis para pôr à vista o que se pensa e o que se faz.
Outra questão é liberdade de expressão da imprensa.
Nunca acreditei na existência de liberdade, como direito absoluto
de expressão na imprensa já que jornais, revistas, emissoras de rádio e de
televisão têm suas regras, seus interesses e seus donos; a liberdade de imprensa
é kantiana.
Todavia existem tantas outras liberdades, todas reguladas pelas
leis do Estado que se comparadas entrarão em choque; serão anacrônicas,
desumanas, inaceitáveis e até mesmo engraçadas e patéticas. Portanto não comparemos
o que é liberdade para um esquimó com o que nós brasilinos entendemos sobre
direitos de expressão, de ir e vir, de propriedade, de privacidade e outras
mais.
E é privacidade o que se discute na questão das biografias e
não liberdade de expressão. É se o biografado autoriza ou não expor sua
privacidade. Acho que ninguém vivo deve ser biografado; só depois de morto e de
já ter se passado alguns anos, que não sei quantos devem ser.
Biografia não tem que ser autorizada, esse pretenso gênero
literário tão discutido e produzido as baciadas sobretudo nos EUA onde, em
geral, os biografados são pessoas de fama e notoriedade, artistas populares que
seus fãs e seguidores sabem mais detalhes de suas vidas que eles mesmos e ainda
pode-se escolher qual se quer ler entre 15, 20 autores diferentes do mesmo
biografado.Pessoalmente não me interessa se Caetano Veloso comeu manga com
febre na juventude ou se Getúlio Vargas sorvia um mate amargo a seu gosto e
comia Aimée, mulher de seu Chefe de Gabinete. Se John Kennedy comeu ou não
Marilyn Monroe e que outros serviços a estagiária Monica Lewinsky oferecia ao
presidente Bill Clinton. Nada é mais óbvio, e irrelevante, que um gaúcho beba
seu chimarrão onde bem lhe aprouver; assunto sem nenhuma importância numa
biografia.
Se o melhor caminho para o fim da discussão é a conversa
entre biógrafo e biografado, como agora sugere Roberto Carlos , o gênero
biografia deixa de assumir uma responsabilidade para com o verdade, que não deve
anular a imaginação, pois o biógrafo transforma simples informação em obra
impressa, em livro/produto, inventando ou suprimindo material cria um
determinado efeito e falha na verdade. Se contentar-se com o relato dos fatos,
falha na arte literária. A tarefa biográfica, se entendida como tarefa
artística, produzida sob essa tensão conceitual, demarca uma cronologia pondo em
evidência certos padrões de comportamento que a obra confere dando forma e
significado à vida do biografado.
Bio grafia não é obra feita para agradar leitores e nem para
massagear o ego do biografado.
Deve ser livre, construída sob fatos, ser verdadeira e sem autorização
de quem que seja deve ser escrita após a morte do biografado. Nesse caso o
trabalho do biógrafo será estafante (que palavra!) e verdadeiro já que as biografias
autorizadas de “famosos” são apenas enormes reportagens em formato de livro.O
debate atual, inútil e vazio de interesse de leitores, se dá entre notórios
artistas populares, possíveis biografados desejosos de assentar um marco para
além tumulo; a frente de sua obra consagrada por uma ou mais gerações – caso
raro - mas que já estão a margem dos limites dos gostos, dos hábitos e dos
costumes de um outro público em uma outra época.
Não precisamos de uma lei para regular mais esse assunto. O
Código Civil Brasileiro, jovem e atual com seus mais de 2 mil artigos “regula
as relações jurídicas de ordem privada”, e basta. “Uma informação, seja através
de livro ou filme, pode ser proibida se atingir a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade”; esse é o artigo 20 que quase arranha o direito de liberdade
de expressão.
Portanto quem se sentir prejudicado que acorra ao Código.
Será que se eu me
meter a escrever biografias de bandidos terei que pedir autorização ao
Fernandinho Beira Mar se resolver escrever a biografia dele? Sem autorização
dele poderei ser processado e a biografia ser proibida por “atingir, a honra, a
boa fama e respeitabilidade” desse senhor?
Divido com Duque, o cartunista, a mesma inquietação: “sendo
assim o neto do Lobo Mau pode proibir uma biografia contando que seu avo comeu
a vovozinha.”
*Jornalista e escritor